26/04/15

...a fábula da cozinha ...


"quando entrou na sala, todos continuavam sentados nos seus lugares. (…) a mulher do médico aproximou o copo dos lábios do rapazinho estrábico, disse, aqui tens a água, bebe devagar, devagar, saboreia, um copo de água é uma maravilha, não falava para ele, não falava para ninguém, simplesmente comunicava ao mundo a maravilha que é um copo de água. onde a encontraste, é água da chuva, perguntou o marido, não, é do autoclismo, e não tínhamos ainda um garrafão de água quando nos fomos daqui, perguntou ele de novo, a mulher exclamou, sim, como foi que não me lembrei, um garrafão que estava em meio e outro que nem encetado estava, oh que alegria, não bebas, não bebas mais, isto dizia-o ao rapaz, vamos todos beber água pura, ponho os nossos melhores copos na mesa e vamos beber água pura. agarrou desta vez na candeia e foi à cozinha, voltou com o garrafão, a luz entrava por ele, fazia cintilar a jóia que tinha dentro. colocou-o sobre a mesa, foi buscar os copos, os melhores que tinham, de cristal finíssimo, depois, lentamente, como se estivesse a oficiar um rito, encheu-os. no fim disse, bebamos. (…) procuraram e encontraram os copos, levantaram-nos tremendo. bebamos, repetiu a mulher do médico. no centro da mesa, a candeia era como um sol rodeado de astros brilhantes. quando os copos foram pousados, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta estavam a chorar."
josé saramago, ensaio sobre a cegueira

... resta-me pouca esperança sobre as coisas do mundo. não acredito nas pessoas nem nos seus gestos.  nem em mim. não encontro beleza em coisa nenhuma. resta-me o sabor. às vezes dou por mim a pensar que esta aventura de aprender a criar na cozinha está ligado a essa busca. é de uma busca que se trata. chegar à cozinha sem ter nada para procurar não é coerente. quem vai para a cozinha vai sempre à procura de alguma coisa. é quase um desejo de salvação. nem que seja só para esquecer a loucura misturando-a com a dos outros. há nessa procura, nessa busca constante algo de imensamente cansativo. porque é preciso saber que não se sabe o que se procura. e que todo o prazer, na cozinha, é imensamente efémero. dura sempre só o tempo dos sentidos saberem o sabor das coisas. e depois, ter a certeza que, se um dia se encontrar esse algo que se procura, ter essa certeza sempre presente que recriar tal momento, tal encanto inicial do sabor encontrado será, quase, impossível. é nesta insanidade que habitam os sonhos. não se pode estar na cozinha sem o sonho. sem a capacidade de sonhar. de ver o que os outros não sabem. de ter o sabor imaginado que os outros ainda não sentiram. de procurar, sempre, isso que ninguém sabe que existe para além de tudo o que já se conhece. é talvez o impossível, mesmo, que se busca incessantemente. quase como se isso fosse o que mantém tudo num equilíbrio estranho mas constante. que obriga a não desistir de estar ali plenamente. às vezes dou por mim a pensar que nunca saberei o suficiente para reconhecer esse momento quando me for dado. a tristeza é sempre o lugar das sombras e sorrir tem pouco haver com tudo isto. talvez seja por isso que estou nesta aventura. numa réstia de esperança. nessa réstia de força para procurar até ao limite máximo da vontade, algo que me encante uma vez mais. nem que seja só por esses breves segundos em que a boca sabe o que o sabor é capaz de revelar por inteiro. um deslumbre. um imortal lugar de sonho. que seja assim. perseguir sempre isto. até ficar só. até ser noite muito mais tempo. mas encontrar. porque, na cozinha, procurar é sempre preciso. é a essência de tudo. ou, sem assim ser, não vale a pena tentar...

... favas à antiga ...

... há coisas que trazem consigo o saber dos tempos. e o sabor das mãos que o conservaram. 

«...é esta a mais grandiosa história dos homens, a de tudo o que estremece, sonha, espera e tenta, sob a carapaça da sua consciência, sob a pele, sob os nervos, sob os dias felizes e monótonos, os desejos concretos, a banalidade que escorre das suas vidas, os seus crimes e as suas redenções, as suas vítimas e os seus algozes, a concordância dos seus sentidos com a sua moral. tudo o que vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. mas o que fica irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia, desespero e vaga vibração. o mais veemente dos vencedores e o mendigo que se apoia num raio de sol para viver um dia mais, equivalem-se, não como valores de aptidões ou de razão, não talvez como sentido metafísico ou direito abstracto, mas pelo que em si é a atormentada continuidade do homem, o que, sem impulso, fica sob o coração, quase esperança sem nome.»
agustina bessa-luís


favas suadas na sombra do outono
ingredientes
1 quilo de favas
1 chouriço
1 morcela
1 cebola
3 dentes de alho
1 folha de louro
1 tomate maduro
2 tiras de toucinho
3 ovos
vinho branco
azeite
sal
pimenta

receita: refogue com o azeite, a cebola e o alho até alourar.  refresque com vinho branco. junte o chouriço, a morcela e o toucinho e deixe apurar tudo em lume brando. junte o sal e a pimenta. a meio da confecção, junte o tomate sem sementes e sem pele, aos cubos pequenos. deixe apurar muito bem juntando um pouco de água se for preciso. junte as favas e prove os temperos juntando a folha de louro. deixe apurar até ficar pronto. retire a folha de louro e sirva.

dica: depois de terminar deixe, com o lume desligado, o tacho fechado durante uns minutos. escalfe os ovos à parte em água a ferver com sal e vinagre de vinho tinto e sirva colocando-os por cima das favas.

... dos sabores antigos. daqueles que trazem o tempo marcado com se fosse um sabor. este prato, não sendo tão feito de memória como se pensa, tem esse condão de nos levar até à soma de todos os medos, de todas as bravuras, de todos os saberes do homem. é brutal, bruto, rude. e com isso sabemos que temos, na terra, as mãos e os pés, assentes...

25/04/15

... pudim abade de priscos ...

... «pallha? então dá palha ao seu rei?»; «real senhor... todos comem palha, a questão é saber prepará-la e pôr-lha diante...». diz-se que foi manuel joaquim machado rebelo que o terá dito. este era o abade de priscos. e não há sabor mais sagrado do que este. porque é uma iguaria única. diferente de todas. porque nada há de mais simples e também de mais misterioso. a conjugação de coisas improváveis. e que se eternizam num sabor que se reconhece à primeira colherada. nada há de mais perfeito na cozinha do que isto...


pudim abade de priscos (sagrado)
ingredientes
15 gemas de ovos caseiros/frescos
500 gramas de açúcar
500 ml de água
50 gramas de toucinho
1 cálice de vinho do porto
caramelo
pau de canela
casca de limão

receita: num tacho de latão ou cobre coloque água, o açúcar, o toucinho, o pau de canela e a casca de limão até este atingir o ponto de espadana. num recipiente à parte bata as gemas com o vinho do porto até ficar bem ligado. verta a calda para as gemas passando por um coador e mexendo bem sem fazer espuma. barre uma forma com caramelo e verta o preparado anterior levando depois a cozer em banho-maria aproximadamente por 30 minutos. desenforme quando estiver quase frio.

dica. use uma forma com tampa.

... é daqueles sabores que a memória conserva. não há nada a fazer. seja algo que fique como bom ou não. e a memória tem o poder de saber tudo o que guardamos como nosso. seja essa força que a diferença ao provar tem, seja pela força que a história de uma iguaria pode trazer consigo. ou a memória de um avô que dá a um neto a provar numa colher um pudim "diferente" e com isso transforma tudo na mais doce coisa alguma vez provada...

... identidade e cozinha ...


"... são pratos de todos os dias, com os quais se pode fazer muito com pouco. não cansam nem estão sujeitos a modas porque a sua função não é deslumbrarem, mas sim, estarem. estarem à nossa disposição para os confeccionarmos quando queremos, antes de tudo o mais, alimentarmo-nos. o primeiro objectivo de vida de um ser humano é comer para se manter vivo. depois entra o lado recreativo do prazer de comer, que também se encontra ao saborear robustas e infalíveis iguarias. algumas foram a base de sobrevivência de milhares de pessoas ao longo de séculos, por isso é melhor mantê-las por perto pois a vida é feita de ciclos..."
fortunato da câmara

... tenho sérias dificuldades em sacrificar um sabor. e um certo desgosto em ver o espectáculo em torno da cozinha como algo de "moderno". cozinhar sempre foi algo espectacular. sem precisar de adereços ou de adornos como hoje acontece. aprender a cozinhar profissionalmente tem muito que se lhe diga. envolve muito trabalho. envolve um grau de desgaste físico grande. envolve ainda um abdicar de tudo para aprender, verdadeiramente, o que se pode e como se pode cozinhar. é preciso experimentar. sempre. longe dos holofotes. longe do brilho desta cozinha que hoje é um circo. há numa composição de andrew lloyd webber uma expressão fabulosa: "razzle-dazzle" que descreve este show em que tudo se transforma quando o prato chega à mesa. de boçais comensais a pseudo-ilustres homens que degustam iguarias todos precisavam encontrar na cozinha alguém que soubesse o valor de uma refeição. deste "estar" à mesa que se vai perdendo cada vez mais. e quando, ao aprender, nos é dado um vislumbre desse espaço de inebriante processo de engano da alma, percebemos que somos de outro tempo e de outros modos que não estes, deste tempo em que habitamos. pensar nisto tudo é aprender. pensar isto tudo é perceber que há uma origem que poucos já querem saber ou ouvir falar. que as coisas não surgem no hoje, nem no agora, sem uma raiz. ir procurar essa raiz é, para mim, em cozinha, cada vez mais algo em que me quero concentrar. diria que é uma essência perdida. não lhe chamaria, como modernamente se faz, de autenticidade. chamo-lhe de essência. o que resta ainda depois de todos os adereços que foram colocados nesta coisa de cozinhar para muitos com o melhor sabor possível. isso sim é um processo de desconstrução. de procura. é uma viagem. sei que vou parar, muitas vezes, à terra ou ao mar. às mãos que envolvem os produtos. aos migrantes e aos que chegaram e deixaram só qualquer coisa de diferente. perceber a essência de cada receita é perceber a sua história. a pior coisa que existe ou pode existir na cozinha é uma iguaria cozinhada sem identidade. por repetição. ou por domínio de uma técnica sem lhe saber a razão. talvez perceber isto tenha sido algo de fabuloso. dirão, os homens deste tempo, que será uma marca a cultivar. para mim, neste momento, é só algo que me agarra a esta coisa da cozinha e lhe dá um verdadeiro sentido. e isso, quando cozinho, é tudo...

23/04/15

... falhar na cozinha ...


... gosto de ter um chefe que chega ao fim de um dia a ensinar e diz: desculpem por não ter conseguido estar mais com cada um de vocês. e que diz: "obrigado por tudo, hoje". e que confia o trabalho a um grupo mais reduzido porque sabe que pode contar com o que já sabemos. e que, por coincidência dos deuses manda fazer receitas com dois mil anos e com isso exploramos "novos" e esquecidos sabores. com estes gestos também se aprende. mas isso foi ontem. hoje enfrentei o erro. e  a frustração.  hoje foi um dia tremendo. daqueles que se fosse possível "saltar" o faria. gosto, cada vez mais, da criação que se faz em pastelaria. talvez porque ainda não a tenha descoberto em cozinha. deve ser de um natural medo que se transferiu de um lado para outro. ou da possibilidade ou impossibilidade de criar cozinha que ainda rege um percurso que, naturalmente tem que ser feito por etapas. mas hoje, cada coisa que fiz, correu mal. foi tempo de avaliação intermédia e o tema era: chocolate. testei, tudo, li, reli. revi e salta uma pergunta daquelas que não sabia. nunca se sabe tudo. mas era um prenúncio. tudo o feito, com receita que bate sempre certo, correu mal. ficou sem a consistência que sei que já sou capaz de fazer, sem brilho, sem lógica. nem empratar com algum sentido fui capaz. terminei tudo com um terrível sentimento de frustração. mas aprendi. aprendi que a cozinha é certamente feita de imensos dias assim. em que o erro é uma lição. em que nossa incapacidade tem que ser a força de no dia seguinte continuar e fazer tudo de novo, mas bem. é talvez a vida a dar uma lição, novamente. a cozinha é um lugar de resistência. não se desiste, na cozinha. volta-se no dia seguinte e insiste-se até tudo estar no seu lugar. ou se conseguir fazer melhor. foi uma aula "puxada". mas aprendi muito mais do que podia imaginar. e assim, mesmo doendo a alma, vale muito mas muito a pena...

21/04/15

... vontade de cozinhar ...


... a melhor coisa que se pode pedir a quem quer aprender a cozinhar é que tenha vontade e queira, de facto, aprender a cozinhar. quando as duas coisas se conjugam, sabemos que tudo pode acontecer. porque nada segura melhor um grupo de trabalho do que a motivação para aprender. essa motivação é alimentada pelo que é ensinado. quando assim não é o edifício da compreensão começa a cair. e a motivação dá lugar ao desalento. e quando se enche a escola de coisas e mais coisas e se esvazia o espaço e o tempo para aprender de coisas e mais coisas, deixando só o serviço para ser cumprido, tudo parece errado. e está. há no acto de ensinar e de aprender a cozinhar algo de muito diferente de todas as outras coisas que se podem ensinar e aprender. é que exigem o exemplo. a demonstração. a experiência e acima de tudo, depois, a reflexão. a troca de ideias. as dúvidas e a imaginação que podem abrir novos caminhos. o cansaço e o tempo são algo que, quem vem por este caminho, sabe que vai enfrentar todos os dias. já tudo o resto depende só de cada um. mas depende da forma como se vê um processo de aprendizagem. e da mestria com que este é orientado. assim como, da forma como tudo o que rodeia quem ensina condiciona o que se pode ensinar. mais que, ensinar e aprender a cozinhar exige uma imensa capacidade de troca e abertura a todas as ideias e experiências vividas. ninguém chega à cozinha sem ter vivido. sem ter uma experiência de cozinha. sem saber fazer, muito bem, alguma coisa. valorizar isso, saber perceber que com todos se pode aprender muito mais é fundamental. e quando os dias são mais longos do que as horas que neles estão contidos, sabemos que algo está mal. a vontade, a minha, de aprender está cá. intacta. talvez seja de eu ter chegado a isto tarde demais. ou pela percepção que a idade me dá da realidade que me rodeia. mas nada custa mais do que ver perder-se a vontade de aprender de todos com tanta dispersão e fogo de artificio com que se revestem as coisas. a verdade é que, em cozinha, o fogo de artifício desaparece mas o céu fica lá sempre. e o que falta, o que falta sempre é saber que o céu tem o limite que desejamos que tenha. falta devolver a quem deseja aprender, em moeda de troca, aquilo que, sem distracções, só quem sabe pode ensinar. ensinar a cozinhar. falta cumprir isso. porque a vontade é sempre um rastilho...

20/04/15

... esperar a surpresa ...


«...eu admito tudo desde que se respeite o essencial. as coisas, como sempre, têm ciclos. agora, depois dessa exuberância, desse exagero que ainda persiste em muitos sítios, está a voltar-se à simplicidade. mas ainda subsiste a confusão de paladares, quando não temos capacidade de apreciar dez gostos diferentes e texturas. dantes eu falava em consistência... mas agora é texturas. até que uma grande figura da cozinha mundial teve esta afirmação: a partir de agora, o gosto passa a ser secundário, o que interessa são as texturas e as suas ligações. eu, perante isto, além de exclamar impropérios, digo: querem seguir por esse caminho? à vontade! mas não comigo e com pessoas, talvez a maioria, para quem o gosto é o fundamental.» 
josé quitério, jornal expresso

... às vezes é preciso não esperar nada. já não espero nada. mas gostava que assim não fosse. dizem que se chama esperança a isto. a não esperar mas gostar que assim não fosse. ou deve ter outro nome qualquer ainda por decifrar. chegado a meio do caminho sei uma coisa. que nesta aventura de descobrir o mundo e a prática da cozinha muita coisa está, ainda, em falta. faltam algumas bases num percurso que se faz caminhando, como todos, mas onde as bases são o sustento de tudo o que há para saber. faltam porque ainda ninguém se lembrou que ensinar a cozinhar é ensinar culinária e técnica. mesmo que básica. e depois, há, de facto, uma constante vontade que algo seja transformado em saber. a verdade é que no corpo, nos gestos e na forma de lidar com os desafios já entrou uma rotina e um saber de experiência feito que ajuda em muito. saber que observar os outros é tão importante como aprender fazendo. que ouvir, trocar ideias, procurar e procurar sempre muito, nos torna mais atentos, com maior destreza, com maior grau de exigência para connosco e para com os outros. aprender isso foi, até aqui muito importante. e a cozinhar. a cozinhar para muitos. para centenas. em velocidade e quantidade. perceber o movimento das coisas. as formas de comunicação. a relação entre as coisas. a forma como se cria e se vê o serviço enquanto resultado do trabalho de muitos. a confiança sempre que o outro faça ou fazer por ele o que falta. tudo isso, registado em forma de aprendizagem. mas a verdade é que espero ainda mais. não é expectativa. é esperança, já. esperança que possa aprender pelo exemplo. que a mestria se imponha ao serviço a fazer. isto é muito importante num espaço escolar que deseja ensinar a arte de saber confeccionar alimentos. não é cumprir só um serviço. é ter momentos separados desse tempo contínuo e continuado para aprender pela ilustração e demonstração. para discutir perspectivas. para perceber e incorporar e aprimorar saberes e técnicas. este é o meio do caminho. entrei nesta aventura sem nenhuma expectativa. mas tinha esperança. ainda tenho. a verdade é que o caminho, esse, vai só a meio. e ainda bem...

17/04/15

... a essência da cozinha ...


«...evelyn: the only real failure is the failure to try. and the measure of success is how we cope with disappointment. as we always must. we came here, and we tried. all of us, in our different ways. can we be blamed for feeling we're too old to change? too scared of disappointment to start it all again? we get up every morning, we do our best. nothing else matters. but it's also true that the person who risks nothing, does nothing; has nothing. all we know about the future is that it will be different. but, perhaps what we fear is that it will be the same. so, we must celebrate the changes. because, as someone once said "everything will be all right in the end. and if it's not all right, then trust me, it's not yet the end."»

the best exotic marigold hotel, filme

... há sempre cinco minutos em que o mundo suspende a rotação e podemos pensar um pouco. chego até à nobre arte de cozinhar tarde demais. porque desisti de tudo o resto. cheio de pessoas por todos os lados. de coisas feitas a tentar mudar o mundo. sem o mudar. desisti. dei por mim a pensar nisso. enquanto pensava que é bom encontrar, nesta aventura, um professor que nos desafia. que abre caminhos. tudo com um frasco de compota e umas bolachas de água e sal. falta muito disto numa escola que devia começar mesmo por aí. por ensinar a descobrir. a mestria de quem vai mais longe permite isso. ver que isso é preciso. dada a compota de laranja a provar fica o desafio. "pensem com o que é que isto pode combinar". é isto que nos ensina. pensei primeiro no óbvio. depois no resto. não sei o que outros pensaram. sei que é aí que a experiência de vida ajuda. e os sabores em memória ajudam ainda mais. tive, por companhia da deusa fortuna, o privilégio de me ser dado a conhecer uma paleta imensa de sabores. com isso posso fazer combinações infinitas. mas acho que seria bom que uma escola onde se ensina cozinha pudesse colocar esses saberes de descoberta como centralidade da sua razão de ser no que diz respeito à cultura que futuros chefes de cozinha deviam ter. foi um professor que pela astúcia e inteligência o fez. esta cultura dos sabores e dos saberes sobre produtos é tão ou mais importante do que as técnicas. esquecemos isto, muitas vezes. há uma visão do mundo que o século passado deixou como marca fundamental: que não somos, em termos de aprendizagem, uma tábua rasa e que temos "conhecimentos adquiridos". o problema é pensar que esses conhecimento são ricos, vastos e variados. estamos no tempo do acesso. mas também no tempo da diferenciação social desse mesmo acesso. aceder é experimentar e conhecer. com isto, tudo difere. pensei nisto. que será sempre importante e urgente criar uma cultura para a cozinha. por muito abstracta que a ideia seja esta noção é, também, fundamental. pensei isto de forma simples. a mesma simplicidade que me levou à pergunta que tenho feito a mim próprio: o que vou fazer com isto? sou um idealista e acredito no homem moderno de leonardo. que não somos só razão. nem só emoção. nem só técnica. nem só cultura. que devemos procurar e ter essa ambição de nos "completarmos". a cozinha completa-me. agora mais do que qualquer outra coisa. não por impulso ou obstinação. nem por irracionalidade. está a torna-se essência de mim. é por isso que a pergunta começa a ser imperativo: o que vou fazer com isto? negar ou aceitar? há na resposta a definição do que somos. seja esta pergunta minha ou de quem um dia possa vir a embarcar numa aventura assim. há um momento em que a cozinha se apodera de nós. torna-se razão de ser. e isso é das coisas mais belas que alguém pode ter na vida. mesmo quando já desistiu de tudo...

15/04/15

... inventar um sabor ...


..."la valentía que no se funda sobre la basa de la prudencia se llama temeridad, y las hazañas del temerario más se atribuyen a la buena fortuna que a su ánimo."
d. quixote, m. cervantes

... aipo, lima, limão, peixe (aparas), cebola, gengibre, caldo de peixe, coentros, sal e pimenta. e pronto. tudo triturado. está feito. não foi pelo sabor que fiz a reconstrução daquilo. foi pelo olfacto. pelo cheiro de cada ingrediente. está no sangue de quem cozinha, a prova. mas está também, no instinto humano de quem come, cheirar primeiro. o que se diz, muitas vezes, ou o que se ouve é mais simples do que tudo isto. é: cheira tão bem. o sabor vem depois como confirmação. isto é relativamente simples de explicar. o olfacto é um sentido de proximidade e segurança. o sabor é mais limitado. é do mais básico que temos. mais ancestral. e ao recriar umas coisas fui pensando nisto. por isso reduzi numas coisas e intensifiquei outras. imagino o criador do sabor original. e toda a história ligada ao prato. é aqui que, como ortega e gasset diria o homem é o homem e a sua circunstância. eu adaptaria para: a cozinha e um sabor é a cozinha e um sabor e as suas circunstâncias. é por isso que, em cozinhas assépticas é tão difícil criar um sabor novo ou uma combinação de sabores experimentados num outro contexto. modernamente tenta-se recriar tudo. os cheiros da lareira, o som do mar, o cheiro de um quarto antigo de uma casa no nepal. a verdade é que nada disso é possível. podemos recriar aromas e pontos de ligação com a receita original. mas nunca o pleno deslumbre.  os nossos sentidos não se deixam enganar assim tão facilmente. estão preparados para perceber a relação entre o local onde estamos e o que estamos a comer. é por isso também que desconfiamos de sabores "perfeitos" em locais diferentes daqueles onde um dia os provámos. pensar isto é ser cozinheiro hoje. e a experiência faz com tudo isto entre agora na equação de recriação de um sabor. porque há coisas impossíveis em cozinha. não no acto de cozinhar, mas na cozinha que cria sabor. o impossível é enganar o sentido humano da percepção. por mais astuto que seja o mestre que cozinha. dei por mim, hoje, a pensar nisto enquanto desejava poder fazer umas boas e portuguesas pataniscas de bacalhau...

14/04/15

... justiça ao cozinhar ...


... aprendi com a vida ou com os meus imensos erros, que é preciso ver todo o cenário antes de tirar qualquer conclusão ou fazer qualquer julgamento de valor ou de acto. a cozinha é um lugar de muitas precipitações. tudo é intenso, em vários momentos. é um lugar onde, facto, todos os erros podem acontecer. é natural. é assim mesmo. há uma conjugação entre o tempo e acção do homem como em poucas outras profissões ou actividades. tudo depende do gesto e da intenção. é simples perceber isso. agora o erro é um lugar comum, para todos nós, na cozinha. viver com dias bons e dias maus é uma realidade mais do que presente. contrariar ou desfrutar disso também. viver tudo isso em conjunto com mais duas dezenas de pessoas que querem aprender a cozinhar é ainda mais complexo. a sorte é que aqueles que estão nesta aventura e neste barco são imensamente grandes na alma e no coração. e na dedicação com que fazem as coisas. é bom sentir isso. é bom sentir a indignação quando alguém que quer mostrar quem somos e que identidade temos nos diz algo que nos "ofende" e a reacção é fruto da vontade que sempre existiu de sermos bons e reconhecidos por isso. aprendemos quando nos contrariam. até com isso aprendemos. aprendemos também quando três dos mais jovens do grupo são chamados a participar em concursos nacionais e numa semana de maratona intensa dão tudo por tudo para serem ainda melhores. nunca importou que pudessem ganhar ou não. uma escola tem o dever de se orgulhar do caminho e não do resultado. a camisola, como modernamente se diz, deve vestir-se no acto de ensinar e dignificar o caminho de aprender. é assim ao aprender cozinha como é assim ao participar num concurso. coleccionar troféus não é, nem deve ser, o objectivo de uma instituição de ensino. o seu objectivo único e último deve ser de apoiar aqueles que querem aprender e todos os dias dão tudo o que sabem e pedem mais. saber mais. ser mais ensinados. aprender mais. estar ao lado de jovens com metade e menos de metade da minha idade na cozinha tem sido um orgulho. assim como todos os outros. com eles tenho aprendido tanto ou mais do que com os chefes que orientam tudo. é essa dignidade que todos temos que ter. e saber ter. junto com a humildade necessária. aprender sempre com todos. com quem sabe mais e com quem sabe menos. a cozinha e aqueles que servimos só ficam a ganhar com isso. todos os dias. os bons e os maus...

... parabéns guilherme, rita e joana. para mim é um imenso orgulho estar ao vosso lado todos os dias. é todos os dias que se ganha o futuro. e esse é, certamente e brilhantemente, vosso!... 

11/04/15

... da paixão da cozinha ...


... são sempre as pessoas que fazem as coisas. não é isso. as coisas, são as circunstâncias. e os lugares. entrar numa cozinha para aprender é um acto de um perigo imenso. se há lugar onde ninguém sabe tudo é ali. e é também ali que se tornam evidentes os caminhos a fazer. o que é preciso saber para conseguir fazer algo que marque a diferença. perceber o nosso lugar é fundamental. como é o de respeitar o dos outros. estar numa escola para aprender cozinha é também perceber que cada chefe tem uma forma de ver o que se pode e como se pode criar. cozinhar. mistura-se nisto tudo a personalidade de cada um. o que são e como são. o que somos e como somos. para mim a pastelaria e o mundo de criar algo para finalizar uma refeição tem sido uma descoberta única. ter um mestre entre portas para ensinar ajuda muito. a verdade é que perceber isso é curioso. porque ao mesmo tempo que me é mostrado este caminho eu tendo a negar essa evidência. forço-me a ir para o outro caminho. porque aprender a cozinhar não é seguir uma "paixão" como agora é moderno dizer. há coisas a descobrir e o que importa é a curiosidade e a dedicação. talvez seja disso que é feita a paixão. mas está antes disso. perco algum tempo a pensar nisto. se devo abraçar este lugar descoberto ou se devo perceber que o mundo é redondo e gira e saber um pouco de tudo é uma missão mais apaixonante e por isso mais curiosa. quando estamos na cozinha uma coisa é certa. há um lugar para cada pessoa. para cada habilidade e para cada talento. isto é o mais curioso. e mais. a cozinha é um lugar de descoberta. porque há uma urgência em tudo o que se faz. uma tomada de consciência perfeita do que somos e como somos. basta olhar para o que fazemos e como fazemos as coisas. tudo o resto é só a natureza humana. e ainda bem...

... ovos escalfados doces ...

... às vezes é só relacionar coisas. ter uma ideia. perceber que o impossível é sempre o limite do que sabemos. do que ainda não sabemos. que não nos deixa ver mais longe. fazer mais coisas. criar uma receita é isso. nem que seja só um primeiro desenho do que pode ser no futuro. é sempre o impossível o limite. 

..."o tempo, embora faça desabrochar e definhar animais e plantas com assombrosa pontualidade, não tem sobre a alma do homem efeitos tão simples. a alma do homem, aliás, age de forma igualmente estranha sobre o corpo do tempo. uma hora, alojada no bizarro elemento do espírito humano, pode valer cinquenta ou cem vezes mais que a sua duração medida pelo relógio; em contrapartida, uma hora pode ser fielmente representada no mostrador do espírito por um segundo."
wirgínia woolf


ovo escalfado doce
120 minutos
ingredientes
ovos frescos
farinha
açúcar (branco e amarelo)
nozes
vinho moscatel
vinagre (de framboesa e balsâmico)
manga
laranja
pêssego
limão
manteiga

receita: ovo - num tacho coloque 100 gramas de acúcar branco e 100 ml de água e 20 ml de azeite de framboesa. pode colocar duas ou três gostas de limão. deixe ferver. quando ferver reduza o lume ao mínimo e parta os ovos deixando escalfar. demora algum tempo pois o açúcar retarda a cozedura da clara do ovo. retire depois de "escalfado" e limpe o ovo com uma faca ou com os dedos. deixe arrefecer e retire a gema que deve sair inteira. noutro tacho coloque 150 de açúcar e o sumo de uma laranja. deixe ferver e verta o conteúdo de uma manga triturado ou polpa. deixe reduzir até ter a consistência da gema. retire e deixe arrefecer. crumble - numa taça misture 100 gramas de farinha peneirada, 150 de açúcar amarelo e 100 gramas de manteiga. misture tudo até ficar com a consistência desejada que deve ser solta mas com alguns pedaços menos desfeitos. corte uma beterraba e coloque numa frigideira com manteiga e açúcar e refresque com vinho moscatel e vinagre balsâmico. deixe arrefecer e junte as nozes. junte depois tudo isto à farinha, açúcar e manteiga. misture tudo e leve ao forno a 200 graus até ficar pronto. base - corte dois pêssegos e num tacho faça uma calda de açúcar. deixe ferver e reduzir até ficar em consistência de compota. finalização - coloque o crumble em forma de círculo. no centro coloque a compota de pêssego. sobre a compota coloque a clara de ovo escalfado e por cima a geleia de manga e laranja formando a "gema". raspe um pouco de chocolate branco. 

... ligar as coisas é um acto de conhecimento. o sabor esse, deve sempre respeitar a surpresa quando assim é. é um respeito por quem degusta algo que está para ser descoberto. aprender isso é perceber que cozinhar é um acto de generosidade. sempre...

10/04/15

... isto já não é cozinhar ...


“...mas um velho d’aspeito venerando, 
que ficava nas praias, entre a gente, 
postos em nós os olhos, meneando
três vezes a cabeça, descontente, 
a voz pesada um pouco alevantando, 
que nós no mar ouvimos claramente,
 c’um saber só de experiências feito, 
tais palavras tirou do experto peito:
— “ó glória de mandar! 
ó vã cobiça
desta vaidade, a quem chamamos fama!
(...)”
lusíadas, luís vaz de camões 

... é desta amargura que habita em mim, talvez. ou da desilusão da vida. ou de estar a ficar velho. deve ser isso tudo junto. ou por ter mesmo lido os lusíadas e de citar mentalmente estes pedaços que acima recordo. é o "episódio" do velho do restelo. dizem até que estou resmungão. mas é que a cozinha não é isto que um dito congresso de cozinheiros tentou fazer mostrar. deve ser do tempo que vivemos, deste tempo líquido, destas modas que servem quem as sabe usar ou de ninguém pensar muito ou dedicar muito tempo a ver verdadeiramente a essência das coisas. deve ser disso. ou simplesmente este não é o meu tempo. acho mais que é isso. não sou deste tempo. nem destes modos. nem desta forma de ver o mundo. ou simplesmente, tento justificar assim, porque somos muitos e assim, quando se trabalha menos coisas e menos quantidades mais podem comer. mas deparo-me com a questão do elitismo do discurso. ou da irrealidade do mesmo. começo pelo princípio para não me perder. a cozinha portuguesa sempre foi para mim uma invenção do estado novo. tal como as aldeias, a exposição do "mundo português" ou a imagem de afonso henriques que todos temos (a do elmo e espada - que está na estátua em guimarães e no castelo de são jorge). esta invenção é simples. mas tem uma virtude. conservou durante um tempo longo, maior do que a maioria dos países da europa, uma certa forma de cozinhar. ligada à terra, aos costumes, aos produtos locais e a um modo de fazer que se enraizou pela tradição oral, principalmente, e pelo trabalho de quem fez essa recolha. a sua representação máxima foi o trabalho de maria de lourdes modesto. mas há aqui uma questão fundamental. é que cozinhar não era, nesse tempo, algo desligado da produção próxima e dos produtos "locais". essa era a sua essência. os tempos de vivemos são da plastificação das coisas. da massificação. do acesso. da industrialização. do "em série", para as "massas". o consumidor procura poupar tempo na refeição comum. guarda o ócio, quando tem acesso a ele, para a degustação. e paga por isso. paga pelas duas coisas. por ter transformado a refeição em fast food (não só a do conceito original mas todas as refeições em virtude do tempo de almoço ou jantar ter que ser "gerido") e por se ter afastado do "campo" e das coisas "naturais". ouvir um "chefe" de cozinha fascinado com os produtos de época que plantou no seu pedaço de terra e esperou ver crescer e vender isto como algo inovador ou de "excelência" revela-se um absurdo de todo o tamanho ao olhar da senhora maria que ainda planta umas couves no quintal. uma pseudo-moderna-civilidade transformou o alho-francês em packs de uma coisa cortada, lavada e pronta a consumir como se a terra fosse uma coisa absurda e estes fossem feitos em laboratório para consumo de alguém cuja origem é "in vitro". estou a exagerar. é verdade. é o lado de velho rabugento. a verdade é que a cozinha portuguesa não existe. nunca existiu. somos dos países mais antigos do mundo. somos também um espaço geográfico que foi historicamente ocupado por povos com diversas e imensamente ricas origens culturais e gastronómicas. o estado novo harmonizou tudo isso chamando-lhe origem. mas a verdade é que essa conservação de razão ficou por lá. mas agora pouco disso é essência do que é cozinhar. é claro que não podemos "comer" como se comia há uma dezena de anos atrás. nem é bom regressar ao tempo passado. não sou tão crítico assim. mas estamos a seguir um caminho estranho. sem pensar muito, sem a necessária reflexão, estamos a importar coisas e mais coisas. a fazer de uma viagem a um lado qualquer do mundo um motivo para vender um prato e com isso um restaurante. é tudo um espectáculo sem identidade. uma vã-cobiça. algo de imensamente estranho. é talvez por ser o tempo que já não me pertence. mas sinceramente acho que é outra coisa. que é a ausência de cultura. de saber. de referências. de identidade. e isso sim, assusta-me. porque isso não é cozinha. é enganar quem come. é vender a banha da cobra em forma de puré ou harmonização de kick de sabores (sim, ouvi isto). e isso não tem qualquer relação com a comida. ou com cozinhar. é de vã glória. ou de fama. falta cultura. muita mesma. e pior, falta história. e gastronomia. estamos a desbaratar algo de fabuloso. assusta-me isto. imensamente. porque isto já não é cozinhar. por muito "interessante" que possa parecer, nada disso é cozinha. é outra coisa. e quem ler o resto que falta do episódio que emoldura estas palavras perceberá o que é...

08/04/15

... cozinhar e a televisão ...


... há uma brutalidade (de estar em estado natural ou em bruto) imensa em ver "desfazer" uma lampreia. ou em cortar um lombo de salmão. ou no acto simples de picar uma cebola. é tudo em bruto. a cozinha é feita disto. e ainda bem. lembra-nos dos nossos mais antigos instintos de sobrevivência. da rude natureza do ser humano quando chega ao acto mais necessário: o de se alimentar. depois podemos embelezar a coisa. rodar os sabores, brincar com o azeite e colocar lá um aroma de carvão. ou simplesmente perceber que a cor e o sabor podem jogar com os sentidos da mesma forma que jogamos com a sabedoria esperada de quem prova o que cozinhamos. é neste momento que percebemos que aprendemos algo novo. que deixámos já de cozinhar o óbvio. o simples. para começar a ser capaz de cozinhar para cento e tal na mesma velocidade com que o fazemos para trinta ou quarenta. que os procedimentos já entraram no corpo. que já não há medo de cortar cento e tal pedaços de peixe com o tempo a contar. percebemos que do animal vivo ou morto seremos capazes de tirar o que precisamos. e agradecemos a quem ensina por nos trazer até aqui. e esperamos agora qualquer coisa de estranho. este esperar. é como na televisão onde tudo parece tão limpo. e naquele lugar, tudo é de uma brutalidade imensa que é preciso retirar antes de ser servida. ninguém gosta da rudeza sofrida num prato. o pior é a construção prévia que alguns vão tendo que cozinhar é como num filme de deliciosa aparência para encantar tudo e todos. retirar a rudeza das coisas naturais é um trabalho desgastante. mais ainda o é quando aqueles que são servidos e alguns que cozinham acham que há uma "arte bela" nesta coisa de cozinhar. a beleza, já o escrevi aqui uma vez, está no sabor. e no prazer que deste deriva. e é nesse sabor que tem que estar toda essa magia. de retirar ao bruto tudo que é feio e colocar lá toda a dedicação e trabalho para deixar só o bom e o belo. aprender isto é perceber que é preciso fazer isto e sempre mais. até o corpo ganhar forma para o fazer naturalmente sem pensar muito nisso. e conseguir fazer tudo isto ao ritmo do empratamento de um prato por cada quinze segundos. é o corpo e a mente a esperar essa tal coisa que ninguém sabe o que é. mas que espero aprender. ou dominar. é talvez essa a esperança ainda por cumprir. mas para ser aprendida. sempre...

06/04/15

... há na cozinha uma coisa ...


"...age sempre de tal modo que o teu comportamento possa vir a ser princípio de uma lei universal."
kant

... não gosto da felicidade vendida como agitação. nem desta coisa moderna de "sermos todos felizes". confunde-se, demais, alegria com felicidade e agitação ou bulício com a forma de atingir esse sentimento perseguido hoje por tantos. a cozinha não é um lugar de felicidade. talvez seja por isso que acho que a cozinha é mais do que um lugar. tal como a escola. não são lugares de felicidade. são lugares de outras coisas. de deslumbre. de inquietação. de descoberta. de espanto. de surpresa. de beleza. tudo palavras ou conceitos que "modernamente" tendemos a esquecer. é por isso que na cozinha se fala em esforço. em dedicação. em trabalho. em cumprimento. talvez, de todas as coisas, a cozinha reserva um espaço muito especial para aqueles que fazem da beleza algo a perseguir. a beleza de um sabor. de um prato. de uma conjugação de ingredientes. a felicidade não pertence a ninguém para ser "entregue" ou "motivada". não é uma coisa. é um estado. a beleza é algo que se pode atingir ou desejar atingir, mesmo não sendo a mesma para todos. há no deslumbre que provoca algo de imensamente humano. os sabores são a sua revelação mais suprema, quando se cozinha. há uma beleza que nos toca. nos transforma. que se grava nos sentidos para além do óbvio e que perdura. a verdade é que a cozinha, para ter identidade, é feita destas palavras antigas. porque há algo imemorial em cada coisa que tem sempre o seu lugar. quando se aprende, numa escola, a cozinhar, não podemos misturar ingredientes que não se ligam bem. retirar a felicidade deste contexto parece triste. mas não é. porque não é isso que quem cozinha procura. o que se procura não é instantâneo. é muito mais do que isso. quem ensina sabe bem isso. que tudo foi feito de esforço e dedicação. de memória e da tal beleza que pode temperar um prato. pode parecer estranho. mas é mesmo isso. no retomar do caminho, penso na beleza. sem qualquer gota de felicidade. e isso não quer dizer ausente de alegria. a beleza revela tudo o que falta. de forma clara, sempre...

... d'outro toucinho-do-céu ...

... um dia falarei aos deuses. direi que cabe aos homens o prazer de não saber o que deve ser bom. ou não falarei a ninguém, a deuses nenhuns, para não descobrirem o que os homens souberam fazer com o tempo e as coisas simples que lhes foram entregues em jeito de encomenda da salvação das almas. apetecia-me dizer que as coisas simples são tão complexas que se tornam, cada vez mais, inatingíveis num tempo em que queremos sempre a surpresa em detrimento da certeza. talvez seja por isso que os deuses se afastaram dos homens. e dos sabores...

"que é amar senão inventar-se a gente noutros gostos e vontades? perder o sentimento de existir e ser com delícia a condição de outro, com seus erros que nos convencem mais do que a perfeição?"

agustina bessa-luís




toucinho-do-céu ou dos deuses
60 minutos
ingredientes
500 g de açúcar
150 ml de água
125 g de amêndoa moída
20 ovos (gemas)
 2 a 3 g canela
1 cálice de vinho moscatel

receita: num tacho colocar o açúcar com a água e deixar ferver por 3 a 5 minutos. juntar, num recipiente, as gemas, a amêndoa, a canela e o cálice de vinho moscatel. envolver tudo muito bem. juntar, em fio, a calda de açúcar. untar uma forma (tipo tarte) e passar por açúcar (deve criar uma "generosa" camada de açúcar ao passar na forma). levar a cozer ao forno (pré-aquecido) primeiro a 220 graus na parte inferior do forno e depois reduzir para 200 graus recolocando no centro do forno. deixar arrefecer e desenformar com cuidado.

... é sempre o tempo e as coisas. do demorado tempo das coisas. ou das coisas a mais ou a menos num tempo que já foi. os deuses são imunes a isso. serão sempre deuses. o mesmo não se passa com os sabores. ou a dedicação. ou a forma de fazer as coisas. é desta cozinha que já não temos. temos outra. de coisas e mais coisas em desconstrução porque as construídas já estão feitas. por outros. aqueles que não tendo tantas coisas tinham mais tempo. esperar um sabor é um direito dos deuses. nosso, nem tanto. ou algo a que nos fomos negando. é simples isto. mesmo que não sejamos capazes de o ver. conseguem os deuses ver por nós. e ainda bem...

... um sabor imenso ...


“i can’t stand people who do not take food seriously.” 
oscar wilde

... estou um profundo descrente. perdido o deslumbre fica pouco mais do que uma réstia inglória de esperança. em tudo. é por isso que, ao ver o nome da casa de gelados que conhecida desde pequenino, pensei logo: venderam o nome e pronto. vai ser tipo portugália ou santini. vou entrar e serei atendido por uma menina que nada sabe das vezes que desci o corrimão do antigo centro de comercial que foi sendo alisado pela custa de muitos calções rasgados. pensei logo na desilusão de provar um sabor de "plástico" em que teria sido transformado algo que me enche ainda a memória como das coisas melhores que o tempo das descobertas permite fazer ainda com cobertura de uma inocência que não regressa nunca mais. entrei, a medo. o espaço é "moderno". com "design". o antigo era antigo. sem design. só sabor. e para minha surpresa lá estava o "senhor". o "velhote". agora, aos meus olhos, um mestre na arte de fazer gelados. a conversa começou pela ideia que pensava que "tinham acabado". o que acabou foi o centro comercial. já só lá estávamos "nós". e com isto empurrou-me para a história. com a referência aos calções. vim para cá em mil novecentos e setenta e cinco. parámos uns anos. ainda tem o sotaque. ainda resta ali qualquer coisa de diferente. uma bola de gelado. em copo. pedi. já sem medo porque as mãos eram as dele. descrente já ai a pensar que quando ele partir vai tudo ser vendido. passo para a "montra" dos gelados. os clássicos. e depois as "experiências". cresci com aqueles sabores a serem experimentados. lembro-me de como era a coisa feita. comprávamos uma ou duas bolas de gelado dos "normais". chocolate com nata ou morango. e depois dizia o "velhote": vá, levem uma bola deste para experimentar. e depois digam se acham bom. era sempre ou quase sempre assim. dizíamos, o grupo. o bando, com que ia sempre lá comer um gelado ao fim da tarde no verão depois das aulas. ainda me lembro de uma dessas experiências: gelado de calipo de limão. não. não era isso. era mesmo uma bola de gelado com o sabor do calipo de limão. muito, mas muito melhor. isso ou o de pistache que acabou por ficar na "ementa". olhei. queria aqueles de "experimentação". kinder bueno. é isso. gelado de qualquer coisa impossível. meti conversa com o "rapaz" que atendia do outro lado. descrente, lá rematei: você não deve ser desse tempo mas eu comi muito do de morango. meia dúzia de palavras e lá foi nascendo a conversa. era filho do velhote. aprendeu tudo com ele. será ele a continuar a casa. e lá disse eu em forma de desafio que se dizia sempre: para mim vocês sempre foram muito melhores do que a santini. e eram. e são. há uma grande diferença. é que podemos provar antes de comprar. e lá veio a colher pequena com um bocadinho para "provar este". mas há mais duas coisas que nos separam: os nossos gelados estão à vista e nunca somos capazes de fazer o gelado de morango com o mesmo sabor. porque os morangos são, verdadeiramente, diferentes de dia para dia. fechei os olhos por um segundo. percebi que nem tudo estava perdido. chegou-me o desejado copo com uma bola de gelado. daquele gelado. daquilo que para mim sempre foi e sempre será o "verdadeiro" gelado. provei. e qual avassalador tormenta de memórias tudo regressou ao tempo em que devia ter sido feito. estava lá tudo. igual. perfeito. sem tirar nem pôr nada. tudo, intocável. de uma beleza e de um sabor inconfundível. tchipepa. chama-se a casa de gelados em cascais. e o gelado. é nesta essência que reside a beleza da cozinha. e fazer as coisas assim já é para mãos de mestres. ou para quem não perdeu a identidade. é um sabor imenso. aquele. é o gelado. somente...