25/07/15

... o pano. ou a porta ...


«...o tempo, embora faça desabrochar e definhar animais e plantas com assombrosa pontualidade, não tem sobre a alma do homem efeitos tão simples. a alma do homem, aliás, age de forma igualmente estranha sobre o corpo do tempo. uma hora, alojada no bizarro elemento do espírito humano, pode valer cinquenta ou cem vezes mais que a sua duração medida pelo relógio; em contrapartida, uma hora pode ser fielmente representada no mostrador do espírito por um segundo...»
virgínia woolf

... recordo um excerto de um texto. este. regresso a este momento vezes sem conta em pensamento. talvez na tal insanidade que o antecede. ou pelo estado de espírito que me assola. também. a cozinha é parte de um acto simples de falhar. é sempre assim que se entra em qualquer cozinha. de casa ou de um restaurante. são os bastidores de uma farsa maior. o cozinheiro, é tão cúmplice nisso como qualquer dos outros actores nessa peça maior que é o momento criado. seja ele qual for. seja a mais simples das refeições. é uma pausa. no tempo. no correr de um dia. no correr da vida. mesmo quando é uma cerimónia. a vida foge dali por momentos. vai para outro lugar qualquer. homens e mulheres sentam-se à mesa. vestem a melhor roupa. ou desejam só parar por um instante. falam. contam histórias. inventam vida. falsos amores. falsas glórias. vãs cobiças. tudo misturado com o simples acto de comer. o cozinheiro é quem oferece a razão para tudo isto. sem ver ninguém, trabalha no silêncio dos bastidores. enfeita o momento com um prato. algo para dar ânimo. para combater a irrealidade de tudo aquilo. traz a realidade para a mesa. quem cozinha faz isso. porque apela aos sentidos num momento em que as pessoas que estão do outro lado do pano (ou da porta) dela querem fugir. é por isso que cada vez mais a cozinha feita encenação ganha terreno. todos querem tudo menos a realidade. nada que faça lembrar a vida que corre fora daquele momento. ali, seja em festa ou em reserva de intimidade, ninguém quer a vida sentada à mesa. é tudo uma farsa. verdadeira. em que todos sabem que assim o é. uns deixam-se ir e vivem aquele momento como roubado ao tempo. outros não o conseguem fazer. são de um verniz frágil demais. qualquer coisa que perturbe essa irrealidade é criticável. quem cozinha sabe isso melhor do que ninguém. e sabe que há duas excepções. muito raras. as crianças. para as crianças tem sempre que ir o melhor. e para o amor. o verdadeiro. sem imitações ou coisas de plástico. "é para o casal da mesa da janela." e já sabemos que tem que ir mais bonito porque mais bonito é aquilo que nos liberta a todos desta prisão que encenamos. o cozinheiro, sem ver nada, sabe e sente tudo isto. sabe o seu lugar, nos camarins da peça. a arrumar as coisas. a colocar tudo no seu lugar. na sua insanidade isso é a sua razão naquela peça. é sempre assim. mesmo que digam que não...

21/07/15

... a cozinha dos outros ...


«corrigir. corrigir muito: anoto, risco, reescrevo, volto a riscar; a reescrever, às vezes; a escrever, por fim. […] esboço geralmente um plano de trabalho; e, geralmente não o cumpro. […] a inspiração? aqui para nós, trata-se de uma rapariga fascinante – mas caprichosa como o diabo.»
david mourão ferreira

... entrei sem dar por isso. olhei em volta. há uma grande diferença feita pela experiência aprendida. percebi a lógica de organização da cozinha. uma cozinha profissional não é como a cozinha de nossa casa. tudo tem o seu lugar. uma ordem natural dada por que a habita todos os dias. tem que ser prática. eficiente. simples. olhei em volta. era a cozinha dos outros. daqueles que lá estavam e vão estar depois de eu passar por lá num tempo tão breve que será esquecido tão simplesmente como começou. as coisas, essas, dispostas em harmonia com a utilidade estavam por mim reconhecidas. por isso, tudo é mais fácil. cozinhar é a arte do impossível. sempre. do imprevisto, quase sempre. estar numa cozinha profissional tem coisas destas misturadas à velocidade de cem mil segundos num minuto. é preciso encontrar o nosso lugar. "qual é o teu lugar?", a pergunta feita pelo chefe determinou tudo. ensinou-me. fez-me pensar. "encontrar o lugar". é isso que tenho feito com este caminho. nunca tive esse lugar em espaço ou tempo algum. das músicas que mais gosto retiro a frase que me segue "i have got to find the river" e assim é sempre. devia ser. devia ter sido. agora o tempo é outro. cozinhar é um exercício doloroso. de constante dedicação. retira do corpo, pelos gestos mais do que necessários e o desejo constante de servir, de saber, de estar tudo bem, muito mais do que dá. é um acto silencioso. de eco. como se as coisas fossem aparecer na mesa por obra de qualquer mágico que ninguém quer ver. ninguém quer saber como foi feito, só depois de provar. só depois de estar bom, de procurar guardar e levar o segredo para replicar sempre que o desejo aparecer. mas nem isso, nem essa secreta vontade faz alguém abrir a porta da cozinha para espreitar. por detrás do palco tudo é mais cinzento. sem a beleza do fim de tarde visto pela janela ou o espanto de um prato que surpreende pela cor. estar nestes bastidores é o meu lugar. a cozinha é o meu lugar. estranhamente, mas é. resta aprender. neste tempo curto que me resta, aprender. aprender tudo o que é possível. não para replicar. mas para criar. para perceber. para fazer as coisas com razão. sabendo o que se está a fazer. e como se está a fazer cada coisa. mas mais do que isso, o que se está a servir. falta cultura na cozinha. essa. a da lógica. do saber das coisas. ainda bem que nesta, que agora já começa a ser a minha cozinha, sei cada coisa, percebo a sua razão. o seu lugar...

08/07/15

... faz falta cozinhar ...


«...quem em nós falaria voluntariamente da tristeza e do temor, se fôssemos obrigados a entristecer-nos e a temer, sempre que falamos de tristeza ou temor? contudo, não os traríamos à conversa se não encontrássemos na nossa memória, não só os sons destas palavras, conforme às imagens gravadas em nós pelos sentimentos corporais, mas também a noção desses mesmos sentimentos. as noções não as alcançamos por nenhuma porta da carne, mas foi o espírito que, pela experiência das próprias emoções, as sentiu e confiou à memória; ou então foi a própria memória que as reteve sem que ninguém lhas entregasse...»
santo agostinho

... não consigo esquecer os rasgos na pele. do sol. da vida. aquela mulher de mãos grandes demais. toda ela era feita só daquelas mãos. olhou para mim quando me sentei. vi o arrastar do corpo. lembro-me disso. nunca o esquecerei. era sofrido, o movimento. o espaço acompanhava. era uma sala vazia de qualquer beleza. as mesas de metal antigo, de tubos que se cruzavam em decadência. o papel sobre as mesas. o cesto do pão feito de plástico. os talheres riscados. lá fora, o barulho era imenso. estacionado logo ao lado estava um tractor. ferrugento do ar do mar. batido. tão gasto como as mãos daquela mulher. homens, em grupo, falavam do dia. do mar que não perdoa. do peixe que já não há. vendiam chocos apanhados naquela manhã. um cão fitava-os. esperava uma festa. na sala, esperei. chegou a carta. peixe do dia. nunca é fácil perguntar pelas coisas antigas. a cozinha portuguesa perdeu-se em polvo à lagareiro e doces da casa. é isso repetido de norte a sul do país. depois, há quem faça tudo o resto. mas como dizem: "por encomenda". é preciso encomendar o que é nosso. o que é mesmo cozinha portuguesa tradicional. tudo o resto é porque "as pessoas gostam". pedem, dizem. a mulher chegou e perguntei pelas enguias fritas. as pessoas gostam. disse. meti conversa. expliquei que gostava de saber mais. de como era antigamente. "ó meu senhor, antigamente não havia nada. era tudo muito melhor. feito com água do mar. se quer comer isso tem que ser caldeirada. a gente daqui comia era peixe no caldo. depois chamaram caldeirada. vende, percebe?". percebo. "venha cá comigo". e lá fui. a "cozinha" era um lugar pequeno. um grito da janela. "ó ma'nel vai bucar um balde". era mesmo água do mar. as mãos trabalhavam a uma velocidade infinita. não pareciam as mesmas. eram de mulher, que alimenta. que fez aquilo vezes sem conta. que não pensa mas sabe fazer tudo aquilo como ninguém. "ser mulher de homem do mar não é fácil, sabe?". a conversa desfia-se com a mesma força com que amanhava o peixe e o cortava em postas. a panela era antiga. "mas qual azeite?" vinho sim, do bom que do mau não dá. tudo feito pelo sabor. pelo tempo de outras coisas. a comida portuguesa é triste e pobre. é por isso que é tão afastada desse lugar de requinte que é o restaurante. hoje, tudo sofisticado até ao limite possível. fecha-se a tampa da panela. tudo atado em panos. "para suar, como os homens no mar". para dar sal. ou tirar. para dar sabor. ou tempo. "ora prove lá". sabia a pesca. a gente do mar. a tudo e mais alguma coisa. cada peixe, seu sabor. cada tempo, cada onda. cada hora de cada dia, no mar. estava tudo ali. parecia impossível. tenho esse sabor há anos na boca. como ela o tinha nas mãos. para o repetir. mas esta não se vende. esta é para nós. esta é a típica. como se fazia. como se faz. ali, naquela lição que aprendi, percebi tudo isso. o que falta na mesa dos espaços que se dizem de cozinha portuguesa é mesmo isso. receitas, pratos, saberes e sabores de bom senso e bom gosto verdadeiramente feitos desta alma e desta força. perdemos isso. vamos no rumo das coisas iguais. e com isso, perdemos tudo. antes de avançarmos precisamos, definitivamente, de voltar atrás. porque sem essência não há cozinha. há outra coisa. cozinha é que não...

... batatas à antiga ...

... às vezes, sem saber a razão, pensava naquele espaço. nas festas de anos do meu avô. ou numas férias de verão passadas lá para os lados de vila nova de mil fontes. era quase sempre a azáfama na cozinha que prendia o meu pensamento. a minha mãe a cozinhar. o meu pai a ir comprar as coisas que faltavam. a minha tia a chegar com um "peixe mesmo fresco" a uma casa branco com um terraço em chão de barro. e a mesa, comprida. e a lota, à qual o meu pai me levava e onde via a vida acontecer. era um tempo sem regras. podia comprar-se. ali mesmo. uma caixa. depois era levar até casa e cozinhar. este tempo das festas era reconfortante. porque era em família. era um lugar maior. imenso. de sabores. de doçura. de tempo e bom gosto. como nunca mais existiu...


«...wine is the most civilized thing in the world. in europe we thought of wine as something as healthy and normal as food and also a great giver of happiness and well being and delight. drinking wine was not a snobbism nor a sign of sophistication nor a cult; it was as natural as eating and to me as necessary.»
hemingway

batatas à antigamente
ingredientes
6 batatas para cozer médias/grandes
1 litro de água
3 copos de vinho branco
sala fresca
sal
pimenta
azeite (bom)

receita: num tacho largo coloque a água, o azeite, o sal e a pimenta (a gosto) e deixe ferver. logo que começar a ferver junte o vinho branco e as batatas cortadas aos gomos ou quadrados médios/grandes. junte a salsa (um ramo méido/pequeno picado). deixe cozer até a água ter quase desaparecido (não tenha medo que a batata não se desfaz).

dica: acompanha peixe e carne. como acompanhamento de peixe pode deitar algumas gotas de limão nas batatas antes de servir.

... sabemos sempre que perdemos parte da vida quando olhamos para as coisas e não estão lá. fica a saudade. diz-se que é saudade. é falta. ou da ausência se fez força e chamamos coragem. às vezes, mas só às vezes, tenta-se recriar um sabor para ver se ainda está tudo lá. e está. porque na pele, escrito a tinta do tempo, fica sempre muito mais do que aquilo que até se imagina...