31/10/15

... cozinhar com certezas ...


«... mi mejor fuente de inspiración eran las conversaciones que los mayores sostenían delante de mí, porque pensaban que no las entendía, o las que cifraban aposta para que no las entendiera. y era todo lo contrario: yo las absorbía como una esponja, las desmontaba en piezas, las trastocaba para escamotear el origen, y cuando se las contaba a los mismos que las habían contado se quedaban perplejos por las coincidencias entre lo que yo decía y lo que ellos pensaban...»
garcia marquez

... percebi que a cozinha é um lugar de semi-deuses. questionar é um lugar apenas pessoal. chamam-lhe, modernamente, autoria. de autor. quando colocamos o que somos e sabemos numa confecção. aquele toque que só nós sabemos fazer. mas a verdade é que a base, essa, devia ser a mesma. não há interpretações possíveis para fazer no conhecimento das bases da cozinha. são tão antigas como a origem do homem e o primeiro momento em que, usando o fogo, cozinhou um alimento. questionar isso é questionar a própria forma como tratamos os alimentos. um cozinheiro tem, essa gratidão e respeito a ter que ter com os alimentos. por princípio e por razão. o acesso que se tem a cada coisa é um privilégio que muitas vezes não é valorizado. pensei nisto ao cozinhar um lombo de pescada. acho curioso que dizemos imediatamente: a pescada é um peixe com pouco sabor. tal não é verdade. vivemos é cercados de sabores intensificados, modificados, exacerbados que o suave sabor natural das coisas simples deixam de ter lugar na nossa forma de cozinhar. a verdade é que cabe ao cozinheiro essa "magia" de fazer ter lugar algo que julgamos esquecido na mesa desta contemporaneidade cheia de ilusões. as certezas que temos, no entanto, não se aplicam assim tão facilmente. os peixes não são todos iguais mesmo quando são iguais. nem os dias, ou as horas. ou a inspiração das mãos. no momento. é preciso olhar e sentir o que se pode fazer com o que se tem. sim, sentir. há um lado intuitivo na cozinha que é cada vez mais empurrado para o esquecimento mas que tem um valor incalculável. comer é um acto instintivo antes de tudo o resto. cozinhar, também. a percepção do que temos e podemos fazer é, em primeira análise, instintiva. depois vem o resto. o aprendido. o que se sabe. isto é tão simples que nos afastámos disto como dos sabores suaves. às vezes esquecemos isso. achamos que saboroso é sinónimo de salgado ou apurado até à exaustão. ou cheio de misturas e de ingredientes. podemos reaprender tudo isso se percebermos que um sabor suave é tão válido como qualquer outro. às vezes até mais. porque precisamos disso num tempo de agressividade e brutalidade. sentir que ao comer, podemos cuidar desse lugar de descanso é fundamental. descartar tudo isso é uma perda imensa para a cozinha. farei sempre essa defesa, em cada confecção. nem que seja para salvar da vida aquilo que é preciso resgatar: suaves sabores.

30/10/15

... aguentar quase sempre ...


«a realidade das coisas não são as coisas. a realidade das coisas é o aspecto das coisas.»
pedro paixão

... todos erramos. eu, muito mais do que os outros. aprendi a não ter certezas e a encontrar numa nostalgia que tenho presa à pele algum resto de forças. a cozinha é, para mim, agora um canto. um recanto. um espaço cada vez mais vestido de silêncio e de erro. às vezes algum diz: disseram que estava bom. desenho um breve sorriso. este desfaz-se mais rápido do que dou pela sua formação. regresso ao meu canto e ao meu silêncio. e aos livros. e a procurar, sempre, mais coisas para saber. os livros falam melhor comigo do que alguma vez pensei. há livros que são memórias imensas. outros, legados. neles ninguém tem certeza nenhuma. as coisas estão ali, contadas. descritas. enunciadas. nada mais. livros sem imagens são melhores. dispensam a minha humilhação de nunca conseguir fazer as coisas como se apresentam. depois, depois regressa-se à cozinha. cheia de coisas. cheia de outros. resumimos tudo a uma concordância de cerimónia. percebemos que somos sempre quem sabe menos e quem está, agora, no local errado. no lado errado do tempo, do modo de ser e fazer, e do que é o acto de cozinhar. observa-se. observo. eu, pior que todos, tento. tento aprender sempre no meio de tanta coisa e atravesso este tempo cansado demais. por momentos, percebo que a realidade nunca é aquilo que se julga ver. na cozinha e na vida. e ninguém pergunta nada mais nos tempos que correm. o que aparece é. julgamos tudo assim, é mais fácil. cozinhamos, assim, também. é nisso que me sinto cada vez mais removido para o canto. para um canto da cozinha. porque preciso acreditar que assim não é. nem que seja só para manter a vontade imensa de tentar, um dia, saber cozinhar...

28/10/15

... manifesto pelo acto de cozinhar ...


«...early each day to the steps of St. Paul's, the little old bird woman comes... in her own special way to the people she calls, come buy my bags full of crumbs. come feed the little birds, show them you care, and you'll be glad if you do. their young ones are hungry, their nests are so bare; all it takes is tuppence from you. feed the birds, tuppence a bag. tuppence, tuppence, tuppence a bag... feed the birds, that's what she cries, while overhead her birds fill the skies. all around the cathedral the saints and apostles look down as she sells her wares. although you can't see it, you know they are smiling each time someone shows that he cares. though her words are simple and few, listen, listen, she's calling to you. feed the birds, tuppence a bag. tuppence, tuppence, tuppence a bag. though her words are simple and few, listen, listen she's calling to you. feed the birds, tuppence a bag. tuppence, tuppence, tuppence a bag...»
mary poppins, filme

... nota prévia: "bocusiano" me confesso. até quando paul bocuse foi ao el bulli e referiu que não o surpreendeu. estou no tempo errado. e no lado errado da cozinha. porque hoje o tempo é outro. 

morra a espuma, morra, pim!
resgate-se ao fim do mundo o acto de cozinhar. é urgente. aquele acto de esperar pelo sabor. aquele acto de confeccionar uma iguaria. aquele acto de conhecer a história de um prato e a memória que se quer criar para além do momento. tempos líquidos estes em que um sabor é só um instante. em que se criam espumas, ares e coisas que tais. em que chamamos de texturas tudo aquilo que naturalmente existe e em que, quem cria, armado em semi-deus, recria o que já existe. são tempos de ilusão. de alquimia. de magos e feiticeiros. de alucinações. esta não é a minha cozinha e por isso este manifesto. meu, só meu. uma declaração para mim mesmo pois a mais ninguém interessa. 
serei velho do restelo, serei!
cozinhar parte do calor e do frio. e do tempero. e do esperar. e do misturar. e do preparar e do repetir. aprendemos que podemos saltar passos nesta coisa de fazer de alguém um cozinheiro. que não é preciso saber fazer bem uma coisa pela repetição. fazer o mesmo prato cem vezes e cem vezes sair igual. deixamos tudo nas mãos da palavra desconstrução. depois, sem bases, aproveitamos e criamos a moda de ser moderno ser assim. é um remendo. é uma desfaçatez em frente da memória e do saber. criamos antes de saber verdadeiramente cozinhar. achamos normal isto porque é a tendência. esgotamos tudo em produtos que precisam ser de muito boa ou excelente qualidade para salvar o prato. deixar falar os produtos porque as técnicas, essas, não estão lá. não é sempre assim. salvam-se aqueles que juntam as duas coisas. são poucos, mas existem. salvam-se porque sabem que a memória e a história do que somos e do que comemos é tão importante como a beleza pela beleza.
colocamos as cores nos pratos como recurso para ser belo. não é belo, é bonito. o belo exige o sentimento de compreensão. emoção e razão juntas. percebemos que temos que usar mais coisas. intensificadores. emulsionantes. coisas que salvem o que não está lá. e o que não está lá e o básico acto de cozinhar. aquele que o tempo nos ensinou. a nós, homens, de um tempo certo.
serei esquecido, serei!
depois revestimos as coisas que apresentamos de um manto de nevoeiro. somos cavaleiros da "mesa" redonda sem rei artur. confiamos na direcção sem nos questionarmos. é assim porque é assim. aceitamos a certeza de outros nunca questionando a nossa. mesmo quando não nos parece certo. nem bom, nem que fique para um dia queremos voltar para comer igual. e se voltarmos, não será igual. foi desconstruído. a referência não tem lugar na cozinha destes tempos de passagem. de imediatismo. não se repete. vai-se de espectáculo em espectáculo. muda-se de seis em seis meses porque nada pode ser igual para não ser comparável. difícil sim é cozinhar. e repetir. e ser igual. e termos a certeza das coisas num prato. nem que seja nisso porque a vida a isso nos nega.
serei cozinheiro, sempre!
manifesto, sim, este estado de alma, de resgate da cozinha feita memória, história e sabor. razão. com ou sem receita. moderna, sim, porque sempre contemporânea. mas cozinha. não um qualquer golpe de ilusionismo sem a graça de nos perguntarmos como foi feito. cozinhar é tempo, dedicação, certeza e amor. tudo o resto é passageiro. 
ou então, será de mim...

25/10/15

... pode parecer estranho ...


"a beleza do mundo, que muito em breve perecerá, tem duas margens, uma do riso e outra da angústia, que cortam o coração em duas metades."
virgínia woolf

... desde o primeiro dia em que me desafiei a fazer uma viagem pela cozinha que me pergunto: o que farei com isto. a pergunta era a errada desde o início. devia ter sido: o que fará isto de mim. devia ter-me resumido a um espaço de aprendizagem que fosse só isso. algo que farei agora. gosto da cozinha típica portuguesa. gosto das coisas simples. de saber fazer um bom arroz de feijão ou um bom cozido à portuguesa. os jus, os colis, as reduções são coisas que conheço e tenho a obrigação de saber fazer mas nas quais não fundamento a cozinha que quero fazer. talvez um dia mude de opinião ou me aventure a saber e fazer mais. talvez porque a insatisfação é natural no ser humano e a curiosidade, também. mas por agora ainda estou na fase das bases. assar bem. cozer bem. estufar bem. com sabor e repetindo procedimentos até os saber na ponta dos dedos que criam, todos os dias, algo igual. cozinhar e saber cozinhar é isso. é ter essa certeza e esse conhecimento. antes de tudo o resto que agora é moda ou tendência. ou do deslumbre do mediático de uma cozinha que todos sabemos que não é assim. às vezes faço de propósito para não saber os nomes das coisas. fazer um molho é um domínio essencial. se hoje tem outro nome não me interessa. interessa-me saber fazer as coisas. e saber fazer bem. e saber repetir as vezes que são necessárias com a certeza do resultado final. não percebo quem não procura esta lógica de base. esta estrutura. este fundamento. começar por cima, por coisas que encantam os olhos mas muito pouco o paladar não é cozinhar. é outra coisa qualquer. cozinhar é dar sabor. dar a saber o sabor. digam o que disserem em contrário. a cozinha portuguesa tem essa razão de ser porque é pobre. rica no sabor mas pobre nos produtos que são de sobrevivência antes de tudo o resto. é extremamente exigente, por isso. porque quando havia arroz nas mesas este não se podia estragar. os luxos que agora são certezas levaram ao apuramento da técnica e dos sabores que dela emergem. respeitar isso é respeitar o acto de dar alimento a outros. alimento que é memória, antes de tudo o mais. e agora que resumo o que aprendo a experimentar longe de tudo e de todos, sei que só isso me guia. essa certeza. essa vontade. de fazer saber bem. de fazer o sabor sobressair do que me é dado para criar...

24/10/15

... desmanchar ...


«...assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. eu assim talhei a minha vida, quase que sem pensar nisso, mas tanta arte instintiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha.»
fernando pessoa

... vinte minutos. desmanchar um borrego. aprender o que fazer com cada parte. isto é para assar. isto para grelhar. enrolado assim dá isto. cortado assim dá outra coisa que pode ser para fazer um prato que já ninguém sabe fazer porque já ninguém ensina "aqueles" cortes. vinte minutos. e ali percebi a mão segura do saber feito de experiência. ensina-se assim. de tão simples que é até parece fácil. eu, sinceramente, que já desisti da vida, restam-me estes momentos. estes e aqueles em que me é dada a oportunidade de pensar e procurar o que fazer com alguns produtos. mesmo que o deixe de fazer no contexto prático é com o estudo feito fora dos momentos em que é exigido que se crie algo em grupo que o faço. que experimento. o resto, são dias que passam já longe do encanto ou da ideia que é ali, entre iguais, que podemos explorar a arte de cozinhar para além dos seus limites. se pudesse e tivesse arte para tal escreveria um tratado que ligava o pensamento de kafta a thomas hobbes. o ser humano é, sem dúvida, lobo de si mesmo e perdido entre metamorfoses e labirintos que só o vão destruindo. a cozinha salva de tudo isto. ali são só produtos que falam com que os sabe ouvir. é no silêncio absoluto da pesquisa, do estudo, do trabalho, do experimentar que agora estou e estarei até fechar este tempo em que aprendi aquilo que nunca pensei. a tentar saber cozinhar. este tempo que resta devia ser de experimentação com apoio de quem está disponível para trocar ideias. não o é porque, de todo, todos temos a mesma visão do que deve ser este tempo ou o processo de aprender e ensinar. ou simplesmente porque a cozinha e a natureza humana chocam muitas vezes na ideia do que é o saber. o tal saber cozinhar que faz de cada instante e de cada criação uma conquista pessoal e única. enquanto assim for o espaço da cozinha não terá vida. será um deserto. mas isso é o que sempre foi. tudo e a vida também. por isso, reservo-me a esse momento, e essa coisa fora do tempo e do espaço em que terei que estar para cumprir um calendário. não deixarei de cozinhar e de aprender. de experimentar. e de tentar saber. mas isso agora reveste-se de uma sombra que só uma imensa luz que não vejo mais poderá destapar... 

21/10/15

... da satisfação ao cozinhar ...


«não acabava, quando ua figura
se nos mostra no ar, robusta e válida,
de disforme e grandíssima estatura;
o rosto carregado, a barba esquálida,
os olhos encovados, e a postura
medonha e má e a cor terrena e pálida;
cheios de terra e crespos os cabelos,
a boca negra, os dentes amarelos.»
luis vaz de camões

... gosto de cozinhar. tenho prazer quando termino uma confecção e sinto o dever cumprido. aprendi com o chefe tiago sá que três coisas são precisas: preparação, lógica e fazer sempre o melhor do mundo. quando tudo falta sinto que fica tudo por fazer. ou tudo a meio. a lógica nota-se no prato. a preparação, no sabor. o melhor que sabemos fazer vai-se perdendo sempre que remendamos falhas e faltas. e sinto que precisava aprender uma forma de cozinha que me diz pouco mas que quero muito dominar. a construção de um menu de degustação inverte a lógica da cozinha. do cozinhar enquanto junção de elementos. é um espaço aberto, de imaginação, mas sempre com a lógica como elemento único. quando isso não existe sinto que estou só a cozinhar um prato que podia ser para outra coisa qualquer. quando, no final, olho para o resultado e sei que tudo podia estar muito melhor sei, também, que o peito se enche de um espaço vazio e de um desalento maior, feito adamastor que combato a cada instante neste lugar onde não estou confortável. sempre enfrentei os meus mitos na cozinha. assim foi com o pudim abade de priscos que transformei num gelado e assim gostava que tivesse sido com um prato de coelho (ou caça) onde residem algumas das minhas imensas reservas de convicção. sinto que me falta aprender. e aqui não é treinar ou criar. é mesmo aprender. ser ensinado naquilo que não sei. no uso de produtos, na lógica de construção de um prato, na organização e preparação. talvez num próximo desafio consiga tal coisa. gerir os dias na cozinha é mesmo isto. sentir preso no peito a ideia que sei e consigo fazer muito, mas muito melhor. e quero. porque esta forma de cozinhar é também uma entre muitas. e saber como a fazer é um desafio. ousar entrar nestes fins do mundo faz parte do caminho. e ainda bem... 

17/10/15

... direito de falhar ...


"...não espero nem peço que se dê crédito à história sumamente extraordinária e, no entanto, bastante doméstica que vou narrar. louco seria eu se esperasse tal coisa, tratando-se de um caso que os meus próprios sentidos se negam a aceitar. não obstante, não estou louco e, com toda a certeza, não sonho..."

edgar allan poe

... aprendi uma coisa no tempo que dediquei a aprender cozinha até agora. aprendi até ao fazer, uma vez, o pior arroz que alguma vez fiz. aprendi que erramos sempre muito mais do que acertamos. e por isso temos sempre que corrigir ao longo do processo. seja um tempero, uma apresentação ou uma ideia. o imprevisto e o improvável são lugares imensos no reino da cozinha. as certezas, essas, são muito poucas. sabemos que a + b deve dar c mas tudo se altera sempre. porque estamos com menos atenção, porque não fizemos tudo com o cuidado devido. errar custa muito. magoa a alma de quem cozinha. até porque, do outro lado, na sala, está quem espera o mínimo dos erros. espera até a perfeição. mas é sempre que estamos confrontados com o acto de falhar que nos revemos. saber superar cada um desses momentos é fundamental até porque acontecem mais do que uma vez num dia. uma cozinha é povoada disso. a serenidade, a ponderação e a capacidade de resolução são fundamentais. perceber o que correu mal, resumir e pensar nisso é um direito e um dever. trouxe uma frase comigo uma vez: quando as coisas correm muito bem a autoria de tal feito é da "cozinha". quando tudo falha, quando tudo corre mal, quando é preciso perceber de onde tudo o que está mal aparecer é também da "cozinha" a responsabilidade. essa é uma lição única que retive. porque falhar todos falhamos. saber tudo é o privilégio de loucos ou génios e nesses ainda não tenho lugar embora os primeiros estejam mais ao meu alcance. o que poucos fazem é mesmo olhar para o erro e dizer: vamos recomeçar daqui. aprendendo. porque se há coisa que ensina, na cozinha e na vida, é quando falhamos e pensamos porque tal aconteceu e daí recomeçamos. essa é uma das maiores lições que temos a aprender. sempre...

15/10/15

... fora do tacho ...


"...se tudo isto não é demasiado utópico, então ainda há realmente esperança. e então façamos um pedido: não nos tirem o gosto pela aprendizagem em nome do imobilismo e da falta de imaginação!"

ana hatherly

... ao fim de tanto tempo endurece o caminho pelos passos dados. o cansaço toma forma. é muito, muito difícil mudar o rumo de uma vida. há momentos de desolação e outros de desesperança. muitos de cansaço. mesmo quando está quase tudo a terminar. mesmo quando sabemos isso como certeza do objectivo traçado para além de todos os outros. "viver todos os dias cansa", relembro. o pedro paixão com quem conversei tantas vezes diria que há na nobreza de estar louco assim qualquer coisa de uma utopia incurável. um sangue ou similar. depois, depois há o cozinhar. o juntar os sabores. e o aprender. e o desafio. aprender sempre. e a pergunta. nunca ter medo de perguntar. ando a falar de coelho há tempo a mais. pergunto a todos os chefes que me ensinam e com quem aprendo: qual é o segredo para fazer um bom coelho. todas as respostas são diferentes. desde o aroma de alfazema, às cenouras miniatura, ao enrolar dos espinafres no centro ao gesto que me disse tudo de uma chefe que admiro e apontou para o peito dizendo: tem que vir ai de dentro. como sempre vou juntar tudo isso. gosto deste exercício em particular. porque cozinhar e aprender é essencialmente isso que tem na sua base: saber ouvir todos. depois, no fim, dar o nosso toque, esquecer todas as dores, mágoas e tudo o resto. ficar só tudo o que de mais simples há. sabores para criar. o resto, o resto é sempre a vida e essa segue sempre o seu caminho. que fique o sabor e que seja esse o último lugar da utopia e da loucura. nem que seja por um breve instante...

13/10/15

... cozinhar como uma conversa ...


"...na floresta de gribs, há um lugar a que chamam o canto dos oito caminhos; ninguém o encontra se não o procurar convenientemente, porque não figura indicação dele em nenhum dos mapas conhecidos. até o próprio nome parece uma contradição; pois como é que do encontro de oito caminhos pode resultar um canto; como é que a estrada real se pode conciliar com o retiro, e a senda espezinhada com o esconderijo? se o solitário foge da trivialidade, da que deve o nome ao encontro de três vias, como não há-de ele fugir do que resulta de uma dupla encruzilhada?..."
sören kierkegaard, o banquete

... não me peçam para repetir o que outros fazem. nem para cozinhar sem pensar. sem perceber. sem ter ou dar um sentido ao que há para confeccionar. de nada me incomoda cozinhar para alimentar ou cozinhar para deslumbrar. dividimos demais pela importância uma forma e a outra que não são mais do que uma em si mesma: cozinhar. mas cozinhar é dar sentido. dar um sentido para quem vai provar o prato. tenho lido e ouvido muita coisa. estudar é preciso quando queremos estar no cimo da onda que tentamos acompanhar. ver a "tendência". seguir ou não, por opção. perceber que as coisas todas são feitas de ciclos e que este, desta cozinha feita de espanto, terá o seu fim para outro caminho renascer. perceber que os criadores já falam em "origens" e "raízes" mesmo sem saber muito bem o que isso quer dizer. educar o sabor é um dever do cozinheiro que quer deslumbrar. isso devia ser ensinado nas escolas e nas cozinhas. uma pedagogia do sabor. antes de tudo. acima de tudo. porque é mesmo preciso pensar antes de fazer. perceber que hoje já não comemos o que comíamos há vinte ou trinta anos. simplesmente porque não há ou a sua natureza foi alterada para nos "agradar". perceber que temos mais técnica, mais tecnologia, mais conhecimento. a ciência explica o que nos falta perceber pelo fazer do dia-a-dia. ajuda nisso e nas misturas impossíveis. precisamos do belo porque é dos poucos momentos que temos para o apreciar e mesmo assim é tão efémero como o tempo útil de uma refeição. quem degusta vem do mundo e o mundo é brutal. ali, na mesa, tem que estar o último reduto de certeza que o mundo não é todo assim. pode ser belo e bom. confortante ou surpreendente. perceber que hoje o tempo e a vida é feitas destas coisas ajuda quem cozinha a saber o que oferecer a quem se senta numa sala onde lhe espera o desconhecido. os pratos, as "criações", são agora lugares de descanso. terão que o ser ainda mais no futuro. de fuga, de refúgio. a mesa precisa de uma centralidade esquecida. gostava de criar uma cozinha assim. de reencontrar esse lugar de encontro, de conversa, de afecto. de comentário para além do belo e do bom. ao ler, perceber, pensar, sei que caminho quero fazer. esse, de criar uma degustação conversada com a mesa como palco. nunca só uma prova. nunca só o efémero imediato do acto buçal de comer. muito mais do que isso. uma conversa. cozinhar assim tem que ser uma conversa. para ter sentido. para dar sentido. se assim for, tudo muito melhor...

12/10/15

... descobrir, sempre ...


"my readers probably don’t remember, or vaguely, the very important period before birth, inside their mother’s womb. but I do; as if it were yesterday. […] even at the time, my eyes were my guide, in them resided all my pleasure, enchantment, and the most impressive sight was that of scrambled eggs, without the pan; this probably disturbed me for life.."
salvador dali

... perceber até onde consigo ir. até onde vai o que já sei neste mundo da cozinha. testar certezas. afinar dúvidas. é isso que espero neste tempo que demora a começar. hoje percebi que algo complexo pode ser, verdadeiramente, simples. é treino. e saber por onde começar. cozinhar exige essas duas coisas constantemente. a beleza criada pelo homem também. é assim, sempre foi assim. o resto é dedicação e vontade. mas sinto que falta o desafio, no resto. aprender cozinha pode e deve passar por ai. por esse desafio constante de imaginação e saber. o sabor é outra coisa. perguntei a mim mesmo durante os últimos dias: sabor? mas que sabor? aquele dos hambúrgueres de plástico com molhos de açúcar ou aquele da banha, das carnes e dos legumes que a pobreza alimentou durante mais do que uma geração? que sabor? é que trocar aquele que degusta pelo sabor que se deseja ser de memória e afecto torna-se muito complicado quando nem sabemos quem se senta do outro lado da parede. um cozinheiro pode cozinhar à medida mas no seio da sua família. ou para um público-alvo. mas a certeza de acertar o sabor é gerida entre o medo e a dúvida. a vida vivida pertence sempre a quem se senta para comer o que  criamos partindo das nossas vivências, dos nossos sabores, daquilo que conhecemos. é por isso que cozinhar para os outros é um exercício de risco e incerteza. se o sabor tem que se o centro de tudo este só existe na sua universalidade se o outro o souber. o sentir. como nós, aqueles que criam harmonias. é por isso que sempre, constantemente, quem cozinha precisa de aprender sendo desafiado. e mais agora, em que ainda não sei quais os limites de uma imaginação, memória e saber de cozinha que começa a nascer para ficar...

08/10/15

... mais do que antigo ...


"...o prazer gastronómico não é pecado. o que foi pecado bem marcado pela igreja foi a gula. no entanto, os homens do senhor nunca souberam muito bem onde a deveriam arrumar. começou por ser o primeiro pecado capital, e a gula considerada mãe de todos os outros, depois desceu para terceiro, depois para sexto, voltou outra vez para terceiro. neste momento não se sabe que lugar ocupa. talvez a igreja se tenha interessado mais pelos que morrem de fome do que por aqueles que comem muito..."
alfredo saramago

... aos poucos sai de nós, enquanto humanos, a relação directa com o natural. escrevi, com o natural e não com a natureza. essa, quer queiramos quer não, está sempre presente. é natural que um pão seja moldado com a mão. o gesto, esse, perdemos. dizia um dia que um biface e um rato são iguais apenas numa coisa. no design. o moldar, bolear ou rodar do pão na mão, com as mãos, precisa agora de ser ensinado. perdemos essa noção das coisas naturais. que o pão se encaixa na mão porque é desta que este nasce. do amassar. do criar com as coisas do mundo uma iguaria que tem uma memória histórica maior do que qualquer outra. fazer pão é respeitar tudo isso. ter que respeitar tudo isso. e o tempo. o tempo de espera. o tempo de confecção. o tempo natural das coisas das quais já nem sabemos o tempo natural ou o sabor. percebi isso quando, perante um desafio simples, de ter que cozinhar com o que o olhar me dava a perceber disse: farei um arroz de presunto. e um cozinheiro de meia idade que me via ali deslocado e perdido me disse logo: você é do norte. expliquei que não. que era da terra de ninguém. lisboeta. mas que conhecia. o arroz, o sabor e montalegre onde se come o melhor. ele, fazia migas. foram só dois minutos de conversa e percebemos as coisas naturais entre quem cozinha. truques e segredos à parte, era na essência de usar o que se conhecia, o que ali estava, o que era natural e ligava como nenhuma outra coisa porque eram locais, dali, da terra, que estava o sucesso do sabor servido. quando cozinho tenho sempre isso em mente. em cozinha cada ingrediente, cada alimento, cada iguaria tem o seu lugar e espaço natural. forçar a sua "essência" é ou um desafio ou uma loucura. o cuidado é sempre todo. como o pão, que se respeita. sempre...

06/10/15

...sabor, saber, sabor ...


«you learn to cook so that you don't have to be a slave to recipes. you get what's in season and you know what to do with it.»
julia child

... ontem precipitei-me numa resposta. terei refeito a mesma se tal fosse possível. voltar ao lugar onde se aprende é sempre fabuloso. mesmo quando esperamos mais. e esperamos sempre mais. mas melhor é quando regressamos e deparamos com desafios. cozinhar é a arte de superar desafios. todos os dias. implica uma imensa quantidade de estudo. de gestão do erro. de tentar. tem algo de método. testar, errar, acertar, afinar certezas e registar procedimentos. ter um espaço para isso é muito bom, neste momento. faz com que tenha que refazer as certezas e, acima de tudo, estudar. procurar. tentar saber mais. quem cozinha sabe isso. que precisa desse tempo. sem ele os dias seguem iguais. repetidos e repetitivos. cercados pelas convicções de sempre. sem renovação. agora, este é o tempo para experimentar. quando quem orienta um desafio o sabe fazer e coloca a exigência em cima da mesa ao dizer: se não estiver bom não vai ser servido. ou simplesmente: o foco está no sabor. sabemos que este tempo que resta para aprender tem que ser mesmo isso. dedicado a isso. feito para isso. há nisto algo de muito bom. uma lição dentro da lição. ensina-nos a não estagnar. a mesmo quando tivermos a ideia que já sabemos algumas coisas e as dominamos porque as repetimos algumas vezes, tudo isso pode ser desafiado. cozinhar é mesmo isso. procurar sempre. nunca estar conformado. a cozinha não é um lugar onde se possa experimentar tudo. mas quando se aprende, sim. fechei os olhos e vi que os dias que me esperam são de investigação e investimento no tempo para saber o sabor. saber criar, saber dar beleza, saber conhecer e saber oferecer esse sabor a quem o vai degustar. saber o sabor. desta alma vive quem espera o deslumbre. aprender isso é, sem dúvida, a maior lição de todas até agora...

03/10/15

... manter simples ...


«esta sal
del salero
yo la vi en los salares,
sé que
no van a creerme,
pero canta,
canta la sal, la piel
de los salares,
canta
con una boca ahogada
por la tierra.»
neruda


... aprender obriga a pensar no que se pensava saber ou se desconhecia. nunca tomo nada como certo. muito menos o que sei. exijo sempre de mim essa inquietação. principalmente quando cozinho. e sempre tive preso na vontade de criar algo que pudesse ficar na memória. acho que perdemos a noção disso. que o cozinheiro é um criador de memórias. de referências. de certezas. quando não criamos essa certeza sabemos que tudo falhou. foi só algo mais que se comeu. mas criar algo que fique para além daquele momento demasiado efémero que é o de uma refeição é algo de extraordinário. agora que retomo o acto de aprender, ando na incansável procura. na demanda de leituras, buscas, perguntas, experiências, dúvidas. cada vez mais dúvidas. preparo-me como sei. numa cozinha tem que ser assim. experimentar sempre, no escuro, mergulhado no erro e na tentativa. só nas repetidas imagens da televisão é que o tempero ou o processo sai sempre bem. no processo de aprender, tudo falha. e ainda bem. assim, aprende-se. e este é o tempo para isso. para errar mais do que acertar. para tentar mais do que conseguir. e quando se conseguir, celebrar. e guardar o processo. em nenhuma outra demanda se faz tudo para os outros. não abdico do sabor. nem da beleza. conjugar os dois é que é o desafio. é como fazer um esboço. antes da obra. cozinhar para os outros obriga a isso. sempre. e colocar todas as certezas de lado menos uma: a da cozinha que queremos fazer nossa. sei que não serei ninguém nesta coisa da culinária feita momento de estrelato como se fritar um ovo fosse uma coisa de autor. sei mesmo que não tenho tempo para isso, cheguei tarde. mas sei que quero fazer esta caminhada até ao fim com a mesma ideia. fazer o melhor que sei para aprender muito mais do que pensava um dia ser possível saber desta coisa da cozinha. gostava de um dia conseguir criar um prato que pudesse ficar na memória de alguém. se não fosse criar, fosse reproduzir. acredito que não abdicarei do que aprendi sobre cozinha típica portuguesa, pelo que estudei e quero continuar a estudar sobre isso. mas sei também que ensinei muitas vezes e apliquei muitas vezes a ideia de recriar sempre o que se tem como certo. juntar estas duas coisas e manter tudo muito simples é um desafio imenso. um subir da montanha com a pedra. um colar com cera as asas para voar até ao sol. ou simplesmente, o último canto. não importa. é uma busca incessante por esse saber. esse sabor. que venham os desafios. do mar à caça ou da terra ao céu. não abdico do sabor. mas também não abdicarei de assinar por baixo uma confecção que desejo sempre que crie uma memória um pouco mais longa do que o tempo de um almoço ou jantar. quem sabe, um dia, consigo...

02/10/15

... regressar e aprender ...


«a arte é, provavelmente, uma experiência inútil; como a «paixão inútil» em que cristaliza o homem. mas inútil apenas como tragédia de que a humanidade beneficie; porque a arte é a menos trágica das ocupações, porque isso não envolve uma moral objectiva. Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário.»
agustina bessa-luís

... as mãos mostram o quanto aprendemos. hoje reparei nisso. mudamos sempre porque não paramos de aprender. nunca. e quando se regressar ao local que escolhemos para começar tudo de novo, reparamos nas coisas que mudaram. dizem-nos que muito mais mudou. desejamos que assim seja porque é a mudar que não morremos. e ao transformar, ao refazer e recriar, por mais doloroso que seja, vemos quem somos, o que somos e o que desejamos vir a ser. trago uma cozinha nas mãos e no pensamento. a nossa. a cozinha das nossas terras e das nossas gentes. mas trago também experiência. chego e sento-me. relembro-me o que a vida me ensinou: é preciso, sempre, recomeçar. estou ali para aprender. deixo de saber o que sei, mas não esqueço. o desafio é ainda maior. os segredos aprendidos são guardados. deixar sempre tudo para experimentar. aprender com tudo e com todos. os rostos conhecidos que merecem agora, ainda mais, respeito. os rostos novos, de quem se espera sempre um ar fresco, uma ideia nova, uma forma diferente de encenar os dias na cozinha. olho em volta e vejo gente que esteve em lugares desafiantes. que falam de coisas que não vi. aprendo com eles muito mais do que alguma vez terei para ensinar. cozinhar é um acto que se aprende. mas há uma parte que vem de dentro. da alma que as mãos revelam. dos sabores que se querem reconstruir porque nos são familiares. o cozinheiro é o artista. o sabor é a sua força. a beleza, de a oferecer, está para ser aprendida. é essa a mudança hoje na cozinha que se faz. dar uma forma à beleza do sabor, conservando este e revelando pela forma o que se espera encontrar num primeiro momento em que a iguaria é provada. colocada à prova. é recomeçar tudo isto. com a vontade de fazer mais e melhor. mas acima de tudo, continuar a aprender porque, de verdade, saber cozinhar é um processo que nunca se termina. é uma viagem. e somos sempre viajantes de saberes e sabores por descobrir...