10/05/16

... afinal são eles ...


«... as coisas simples são indissolúveis. não havendo nelas contradição, a tendência é para serem duráveis...»
agustina bessa-luís

... hoje, eles, quem vem para comer não come. degusta. sabe mais, procura melhor. é crítico. muito mais crítico. ouviu, na televisão ou numa conversa ou por comparação num outro lugar, que um coli, um curd, uma emulsão, uma tempura é feita de certa forma. não sabe como se faz mas sabe que existe. hoje, o produto não é só um produto. um lombo de bacalhau não pode ser mostrado no seu estado natural. tem que ser sempre encoberto em qualquer outra coisa que o torne "único". nem que venha da china por barco até áfrica e fique lá dez dias em água doce e depois passe por mil e uma coisas para ser "único". é isto que quer, quem degusta, no prato. comer é coisa antiga. comer produtos verdadeiros, com sabores ao que são, ainda mais pecado mortal para quem cozinha. há nisto toda a estranheza do mundo. parece crime de lesa pátria colocar um peixe num prato com espinhas. ou simplesmente que aquilo que é peixe se pareça com o pobre animal que deu tão vil produto. esquecemos que comemos o que o mundo nos dá. queremos esquecer isso por todas as vias. tornar, também, o acto de comer em algo irreal, longe do processo. esquecemos os homens do mar, os agricultores, os que guardam gado ou simplesmente o tratam todos os dias. não queremos a realidade num prato. queremos outra coisa. cozinhar é agora transformar o real. como se isso fosse possível e fosse bom. não é. nunca será. a raiz do que somos, do que comemos, da nossa história enquanto seres humanos está no alimento. e o alimento é algo natural. por mais voltas que lhe desejamos dar esta é a crua realidade. o cozinheiro é quem coloca sabor sobre as coisas, um restaurador daquilo que se tem como certo. um ritualista. quando isso é roubado ao cozinheiro e o colocam como produtor do belo sem o real, esvazia-se a alma da cozinha. colocar o sabor pelo belo é a essência da alma de um cozinheiro. mas as duas coisas ligadas ao real, às coisas reais. porque se perdemos a noção do sabor das coisas perdemos as coisas em si mesmas. e com isso, falta-nos o pé, a memória e o mar do tempo torna-se imenso demais para sabermos o que nos define e o que define a nossa cozinha enquanto povo e enquanto seres do universo humano. é simples. da terra tudo nasce. e a terra tem cor, cheiro e sabor. mesmo que lhe coloquemos alcatrão em cima...

03/05/16

... criar ou cozinhar ...


«...relaciono-me com a criatividade não sabendo para onde vou, mas sabendo onde não quero estar. e não quero estar no mundo pré-estabelecido, sem consciência crítica, sem questionar as coisas. a criatividade não tem que ser sempre disruptiva. a criatividade pode ser uma mudança minúscula. honesta e responsável. não temos que mudar tudo. integro a criatividade na forma como olho para as coisas. e a pressão, somos nós que a colocamos...»
andoni luis aduriz

... não fomos, os portugueses, mestre na fusão em cozinha, como se quer dizer. como diz quem desconhece a história. éramos e fomos sempre transportadores. nos descobrimentos que foram achamentos de terras, coisas e sabores. não gostávamos. levávamos a bordo as nossas coisas para os nossos e trazíamos as dos outros para os outros. uma certa nobreza curiosa usava coisas novas em cima de coisas velhas. a nossa cozinha é árabe. e é romana. essa é a base. não nos podemos esquecer que temos mais de oito séculos de história de cozinha. sem fusão. só essência. do produto da terra, feito de coisas simples, muito simples. depois, das descobertas as misturas. o sul é rico nisso, muito mais do que o norte. por causa das influências. das cores das especiarias. a fusão é uma confusão moderna. e agora que tenho como referência o ter que cozinhar com uma técnica e recurso marroquino só penso nisso. nessa origem da nossa cozinha. que está ali. no barro, no cozinhar lento, no conservar. está ali tudo. numa lição que nem eu sabia que teria que aprender. cozinho, agora, todos os dias com essa devoção. como se o tempo fosse o melhor ingrediente. como a viagem feita por um portugal imenso me tivesse dado o saber para o sabor que tive que criar e para as criações que ainda vou ter que fazer. é por isso que sempre disse que criatividade sem conhecimento é idiotice. a base, essa, tem sempre que ser o que se sabe, conhece, compreende. daí se podem erguer novidades ou remisturas. fusões. as tais fusões que se diz que são modernas. e depois, depois de tudo quem nos visita quer conhecer um país de sabores. podemos até usar técnicas que descobrimos quando em séculos passados nos aventurámos num mar sem fim. podemos usar condimentos, segredos e saberes. mas o que temos que apresentar a quem quer conhecer a nossa gastronomia é a essência dessa mesma história. tudo num prato. degustado aqui. para memória, de cá. ao criar, tenho sempre isso em mente. porque isso é a essência de uma cozinha de referência. o resto? o resto é só espectáculo. nada mais...