31/08/16

... cozinhar é coisa antiga ...


“...a imobilidade das coisas que nos cercam talvez lhes seja imposta por nossa certeza de que essas coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento perante elas...”

marcel proust

... os cozinheiros perguntam: gostou? quer mais um bocadinho? estava bom? procuram, em cada resposta, saber se o agrado foi vivido na prova. são eternos inconformados. perpétuos inseguros. por muito que se faça uma receita, se saiba de cor e salteado cada porção, cada tempo, cada sabor há sempre a dúvida. o medo. o constante aperto nas mãos e na barriga quando sai um prato criado por quem cozinha, com dedicação, amor e vontade de fazer bem. isto está a extinção. a perfeição deu lugar à intuição. as máquinas às mãos. a cozinha hoje é algo técnico. infelizmente. fazemos molhos, cozeduras, frituras e tudo o mais com a precisão de um relógio suíço mas sem o amor adolescente e estúpido que coloca tempero em tudo. não rimos porque o silêncio é sinal de profissionalismo. não experimentamos para além do seguro porque não está nas instruções. não conservamos nada porque é preciso inovar. a cozinha precisa de menos de tudo isto e muito mais daquilo que a torna razão de ser apaixonante. a loucura. a vontade. a alegria. sem isto somos apenas executantes. e nada brilha verdadeiramente para além do instante em que se esvai uma refeição. precisamos de ser criadores de memórias. esquecemos isto. falta tanto isto na cozinha. hoje. infelizmente...

23/08/16

... a caminhada ...


“...whoever fights monsters should see to it that in the process he does not become a monster. and if you gaze long enough into an abyss, the abyss will gaze back into you...” friedrich nietzsche

... gostava de um dia ser cozinheiro. não sou. ainda. ser cozinheiro implica fazer uma caminhada. a antropologia ensina-nos que nas mais antigas comunidades os membros mais novos de um grupo tinham sempre que fazer essa caminhada. tem várias formas e manifestações. eu escolhi fazer essa caminhada a meio da vida. tarde demais, talvez. mas é mesmo uma caminhada. ao jeito da velha música "do the walk on life". cozinhar não é um acto simples. aprendi já que exige um profundo respeito. é um acto quase sacralizado no sentido do ritual e do respeito. depois vem o resto. o saber. saber mesmo como se faz cada coisa e ser capaz de a fazer sempre com a mesma exigência e sabor. saber escolher um produto, um ingrediente, uma alimento. é uma caminha em que se transforma numa penitência. outra frase recordo: só o homem penitente passará. é mesmo isso. num tempo de chefes e glória é a dedicação e o respeito que marcam a diferença. e o silêncio de um anonimato que faz brilhar o prato muito mais do que o autor. não é o belo que é bom. é o bom que é belo. perdemos esta noção no que diz respeito à cozinha. estamos afastados desse lugar de regresso. cozinhamos instantes quando devíamos cozinhar memórias. perdemos gente de trabalho, de saber fazer, para dar lugar a aprendizes de feiticeiros numa terra onde a magia está onde só alguns conseguem ver. na mais simples das coisas. li recentemente que há espaço para tudo e concordo. mas também acho que não se pode abandonar o que faz da nossa gastronomia aquilo que é para servir bem quem nos visita. quem cá está sabe o sabor das coisas e deve ser ensinado se não os conhece. o que somos é também feito daquilo que comemos e porque o comemos. saber esperar por um bom prato, saber comer, com tempo e modo, perceber o que se como e como se come e porque se come o que se come é hoje a missão de qualquer um que se deseje chamar cozinheiro. este caminho é a minha penitência. no fim, talvez, tenha a honra de ser chamado de cozinheiro. não chefe ou qualquer outra dessas coisas que se rodeiam de um vazio enorme para quem gosta verdadeiramente de transformar alimentos em qualquer coisa mais. simplesmente, cozinheiro. por enquanto, faz-se a caminhada. longa, dolorosa, triste, inquietante, reservada, de aprendiz. penitente. assim tem que ser, porque só assim se chega lá...