04/01/17

... cozinhar é sempre simples ...


...a religião, ou o sentimento religioso, é o mais inconfessável de todos: não por irracional, mas porque é da sua mais íntima natureza o silêncio da vida física do universo, que só faz barulho por acaso e não para a gente ouvir...
jorge de sena

... já não vinha aqui há algum tempo. a vida coloca-se na frente das coisas virtuais. a cozinha exige tempo e dedicação. mas não queria deixar de vir aqui. este é o espaço de uma viagem que decidi fazer. deixando tudo o que sempre fiz. é uma viagem em dois sentidos. para me afastar do que sou e para aprender de que são feitos todos os outros que nunca conheci. é uma viagem de um homem triste. que abandonou a vida. que se fechou em si mesmo e que precisa desta viagem para se segurar ao acto único que me define. aprender. o tempo que passou levou-me a aprender muito com uma experiência única num bistrô depois de estar numa unidade de dimensão nacional. depois, caiu-me nas mãos a abertura de um espaço novo. e para terminar o ano, novo desafio de ir cozinhar com base noutra cultura: a britânica. a cozinha é um lugar de mundos. o mais fácil é mesmo cozinhar. o resto, a chefia de cozinha, a gestão do tempo, o serviço, não tem nada de simples. porque envolve a gestão das pessoas, acima de tudo e por cima de tudo o resto. como um manto. que tudo cobre. que tudo segura. a cozinha, o acto mais nobre de juntar ingredientes, de experimentar sabores, de encher um espaço de aromas que nos trazem memórias ou as criam é sempre o mais simples. agora tenho tempo para isso. a mão foge sempre para os doces. aprendi a gostar e a perceber que o conforto de uma sobremesa pode ser um lugar de salvação numa refeição e aquilo que se leva de bom. a cozinha guarda segredos. gosto de fazer as viagens de e para casa parando para descobrir novas coisas. as pessoas de uma certa idade sabem tudo. a vida traz-lhes a certeza que nós, fechados entre quatro paredes numa cozinha, não temos. a certeza que se "fizer assim" sai bem. e sai. desisti de uma cozinha de coisas "modernas". percebi que as pessoas gostam da certeza das coisas como elas são. que o luxo hoje é ter produtos de excelente qualidade e os entregar aos comensais dando-lhes as voltas mágicas que a o cozinheiro tem que saber sem recorrer ao mundo virtual e aos saberes electrónicos que só as mãos sabem por tanto terem feito. este luxo é de uma brutal ironia. porque se podemos servir uma couve apanhada no quintal do lado o comensal dirá que não é verde como as que surgem congeladas e criadas em série. porque se servimos um peixe de mar o mesmo não tem todo o mesmo tamanho e os comensais estranham coisas assim que não sejam controladas em tamanho e peso. às vezes, mas só às vezes, sento-me por instantes para pensar nesta viagem. tenho aprendido mais sobre o ser humano do que sobre a cozinha do que alguma vez pensei. cozinhar é, nisto tudo, o mais simples. a viagem, em si, é que é complicada. de uma beleza avassaladora pelo que revela. e que cada dia revela mais uma coisa que desconhecida. o saber não aprendido tem destas coisas. é a mais bela das coisas e também a mais assustadora. aprendemos sempre sabendo sempre que a nossa ignorância é maior do que alguma vez pensámos. nisto não há ciência nenhuma. é só a forma como o mundo está feito. porque no mundo da cozinha cabem todos os outros. é tão simples quanto isso... 

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