11/01/17

... os sabores são realidades ...


"...a sua alma estava suspensa duma memória que não chegara a abrir-se. julgava que o mundo sofria duma estranha decomposição; subitamente apetecia-lhe mudar de casa, de país, de costumes; comprava pratas antigas, fazia a sua árvore genealógica, comemorava datas, tinha grandes ideias, gostava de ler a necrologia nos jornais, ouvia música clássica..."
agustina bessa-luís

... a cozinha é um lugar onde o tempo determina tudo. há no rito algo de assombroso. porque não se percebe a relação clara entre o sabor e a forma de o fazer. vivemos num tempo em que deixámos de saber o prazer de ter o momento único de apreciar algo. pagamos pelo produto e não pela forma como foi dedicadamente elaborado. deixamos que as memórias se desgastem. é raro encontrar quem saiba acender um forno na lenha. ou ter a paciência para esperar pelo resultado de uma confecção feita de tal forma. achamos curioso uma máquina com umas luzes que piscam que faz a mesma coisa mas sem a natureza humana que estas coisas de fazer o fogo permitem. de ícaro roubámos esse privilégio. desta forma sabemos que estamos mais perto do que fazem os deuses. achamos que cozinhar é um acto técnico. a verdade é que sem alegria não conseguimos fazer nada com cada ingrediente mas também é verdade que é do sacrifício e da negritude do tempo e do modo desta cozinha que se recebe, em cada momento, uma lição da nossa história enquanto homens e mulheres que aqui chegámos por alguma razão. cozinhar assim é um privilégio. é ter nas mãos a história. a nossa. nem que seja como seres que aprendemos com o fogo o que é a nobre arte de cozinhar...

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